terça-feira, 8 de novembro de 2016

Sobre os pequenos...

Álvaro Bilbao é neuropsicólogo e pai de três filhos. Em Portugal para falar do seu livro, explica como conhecer melhor o cérebro pode ajudar-nos a educar melhor

Álvaro Bilbao, 40 anos, é doutorado em Psicologia da Saúde pela Universidade de Deusto, em Bilbau. Já colaborou com a Organização Mundial de Saúde e trabalha no Centro Estatal de Referência de Atenção ao Dano Cerebral – mas costuma dizer que o seu maior currículo são os três filhos, de 6, 4 e 3 anos. O seu livro, "O Cérebro das crianças explicado aos Pais" (editora Planeta), já chegou às livrarias do nosso país.

Porque é importante conhecer o cérebro para educar melhor?
Porque este oferece-nos muitas estratégias e ferramentas que nos ajudam. Explica-nos como aprende o cérebro da criança, as suas necessidades de desenvolvimento e que ferramentas devem usar os pais na ordem que os filhos precisam. O cérebro do adulto aprende através da linguagem e da razão. O das crianças aprende essencialmente através do jogo e do carinho.
E através do exemplo, não?
Também. As crianças aprendem muito através da observação dos adultos. Se queres ter um filho feliz mas passas o dia aborrecido e frustrado, ele vai imitar essa forma de lidar com os problemas. O nosso exemplo é muito importante. Acontece o mesmo com os smartphones e iPads. Podemos pôr-lhes regras, mas se nós próprios andarmos com o telemóvel atrás o dia todo, eles vão fazer o mesmo.
O que lhe ensinaram os seus filhos?
Ensinaram-me que uma coisa é a teoria e outra é a prática. A teoria ajuda-nos muito a melhorar a prática, mas a prática não sai sempre como queremos. Ensinaram-me também uma coisa muito importante, que não vem nos manuais: a importância do carinho, de lhes dar beijos. A minha mulher ajudou-me muito, porque vem de uma família muito afetuosa, com poucos limites, muito hippie, e eu venho de uma família muito conservadora e tradicional. Juntos, encontrámos uma forma equilibrada de educar. Mas uma das coisas fundamentais para educar é errar – para os teus filhos verem que também te enganas e que é normal não fazer tudo bem. Também é muito importante estarmos em contacto com a nossa criança interior. Estar com crianças põe-nos em contacto com aquela parte de nós que esquecemos em adultos – a capacidade de brincar, de sonhar, de sentir afeto.
Brincar é fundamental?
Sim. O jogo livre é fulcral. O momento em que se apaga a televisão é mágico. É incrível o que os miúdos inventam quando os pais não lhes dizem o que fazer. Isso ajuda imenso a desenvolver a imaginação.
Defende que, até aos 6 anos, as crianças não devem ter contacto com a tecnologia. Isso é possível nos dias que correm?
Até aos 3 anos não devem contactar com tecnologia, absolutamente. Em minha casa não há tablets e os miúdos não usam os telemóveis. Este verão, perguntei ao mais velho o que achava de lhe comprarmos um tablet. Respondeu: 'Talvez seja melhor esperar mais um pouco. Gosto muito de brincar com legos, de desenhar e não quero deixar de gostar'. Não comprámos.
Mas os limites são igualmente essenciais, não?
Absolutamente. Os limites ajudam as crianças a saber o que não devem fazer. A não bater nos irmãos, a respeitar os mais velhos, a não desobedecer, a não gritar... Há pais que, sabendo da importância dos afetos, não dão limites. Não está certo.
O "não" é a palavra mais importante na educação de uma criança?
Enquanto palavra, talvez seja. Mas o mais importante não está nas palavras - são os abraços, os beijos, o carinho. Afetos e limites são igualmente importantes. Ao dizermos 'não', estamos a ensinar-lhes o autocontrolo, a disciplina, a capacidade de controlar a frustração.
O que podemos fazer para lidar com as terríveis birras?
Entre os 2 e os 3 anos, não há nada que se possa fazer. Têm que fazê-las e pronto. Mas há três coisas que podem ajudar e três outras que podem piorar a situação - e a maioria dos pais costuma fazer estas últimas. A primeira que não devemos fazer é zangarmo-nos com as crianças ou ficarmos nervosos. A segunda é envergonhá-las, comparando-as; e a terceira é tentar agarrá-las pela força. Pelo contrário, aquilo que pode ajudar é empatizar com elas, mostrar-lhes que percebemos o que sentem; dar afeto, abraçá-las; e ajudá-las a serem flexíveis, oferecendo-lhes uma alternativa (por exemplo: adiar aquele ato para outro dia).
Alguma vez bateu num filho?
Nunca. Castiguei-os duas vezes, mas nunca através do castigo físico. Está demonstradíssimo que o castigo físico não é bom. Ensina à criança a perda de controlo, a agressividade. Humilha-a, põe-na triste. O castigo físico não pode ser uma forma de educar. Educamos melhor quando não batemos. Já me aconteceu pedir ajuda aos meus filhos, para não gritar com eles.
Há rotinas imprescindíveis em vossa casa?
Somos mais flexíveis em termos de horários e mais ritualistas em relação a certas coisas. Jantamos sempre em família - e se eu não tiver fome, sento-me com eles. Lê-se sempre uma história antes de dormir. Dormem pelas 21h30. Somos bastante flexíveis. Para nós, os afetos são mais importantes do que a ordem.
Não estaremos a passar demasiado stress às crianças, com horários para tudo?
O cérebro não percebe as horas, percebe as sequências. É importante que as crianças e os pais aprendam a ter flexibilidade. As regras são importantes, mas não é preciso ter síndromas de perfecionismo. Para a criança, também é duro ter de fazer tudo perfeito. Atualmente, sabemos que o maiores problemas das crianças se devem ao stress. O déficit de atenção, a obesidade infantil, problemas de comportamento, derivam daí. Isso deriva de querermos que as crianças tenham muitas atividades, façam muitas coisas, que cheguem a horas a todo o lado... E nós também queremos fazer tudo de forma perfeita. A exigência e o perfecionismo da nossa sociedade são tremendos. Em minha casa, tentamos ter manhãs sem stress. Tentamos fazer tudo com antecedência, levo os meus filhos à escola mais perto de casa.
A avaliação, a preocupação excessiva com as notas, não são também um sintoma de obsessão da nossa sociedade?
Sim. O mais importante é que as crianças se apaixonem pela aprendizagem, mais do que por terem boas notas. A maior prenda que podemos dar aos nossos filhos é incutir-lhes o gosto por aprender. Os melhores alunos são miúdos que gostam de aprender.

Fazer depressa não é fazer bem

Como se pode tentar passar o gosto por saborear em vez de consumir?
A primeira coisa que podemos tentar é não consumirmos nós próprios, no dia-a-dia. Não consumir tecnologia, ócio. Não temos que fazer 25 coisas ao fim de semana, podemos simplesmente passar o fim de semana sem fazer NADA. Estar em casa, brincar, dar um passeio. Quando consumimos muito, damos impressão à criança de que tudo acontece muito depressa, de que tem de estar sempre ocupada, sempre feliz. Das primeiras coisas a fazer é dar à criança a liberdade e a confiança para não ter de fazer nada. Depois, é importante não dar demasiada importância ao resultado. Podemos jogar a passar a bola, sem ser a marcar golos.
A nossa sociedade vive cheia de pressa?
Sim. Vivemos num modelo que diz que fazer depressa é fazer melhor. Não é verdade. Um tomate biológico é melhor que um tomate de estufa. Se se for maduro aos 7 anos, em que idade se vai ser imaturo? É muito importante respeitar os ritmos das crianças.
O que mais o fascina no cruzamento da neurologia com a pedagogia?
facto de tudo encaixar. Tudo faz sentido quando juntas a neurologia (que explica como aprende o cérebro), a pedagogia (que explica como aprendemos) e a psicologia (que nos explica o que fazemos e sentimos). As memórias afetivas, por exemplo, são as mais antigas. Situam-se na parte do "cérebro emocional". Podemos esquecer quem é uma pessoa, mas não esquecemos que nos sentimos bem ao pé dela. Um filho nunca vai esquecer uma bofetada. Mesmo que isso não seja consciente.

Fonte: Pesquisas na internet

Antes de ler e escrever, há muito o que fazer

BRINCAR!!!

Há muito para fazer e descobrir antes de ler, escrever e somar, considera Rita Castanheira Alves, psicóloga clínica especializada na área infantil e juvenil e de aconselhamento parental, autora de um projeto que está no site www.psicologadosmiudos.com, e que acaba de lançar o livro “A Psicóloga dos Miúdos”. Antes de entrar no 1.º ciclo, há competências a desenvolver e a estimular nas crianças. “Nos jardins de infância, seguem-se diretrizes e planos normativos, mas há muito espaço para abordagens e perspectivas diferentes. Em casa, há pais que estimulam desde cedo umas competências em detrimento de outras”. Há muito para descobrir desde a nascença até à matrícula no 1.º ciclo. “Dar os primeiros passos no desafio de descobrir quem é, no aprender a ser pessoa, a distinguir-se dos outros, a criar uma individualidade, a sentir-se gostada e a saber gostar”, especifica.
Rita Castanheira Alves considera que é tempo de desenvolver competências as quais chama de “assuntos de toda a vida e mais além”, ou seja, capacidades e aprendizagens que serão a base para a vida real, no mundo, com os outros e consigo mesmo. “Esta fase é essencial para os pais e educadores ‘trabalharem’, de forma natural, no dia a dia, em brincadeiras e nas rotinas com a criança, a tolerância, a frustração, a autoestima, a autoconfiança, a persistência, a solidariedade, a partilha, os limites e o saber errar. Sem nunca esquecer a literacia emocional, dando-lhes a possibilidade de conseguir identificar em si ou nos outros, expressar e regular as emoções – competência transversal para todas as aprendizagens que se seguem, seja na educação formal ou na vida além escola”, refere.
Na primeira infância, é essencial cultivar as “habilidades para a vida”, 
 ou socioemocionais: perseverar, conviver em grupo, lidar com emoções
Antes de se sentar na cadeira da escola, a criança dá os primeiros passos na autonomia e independência para que, desde cedo e de forma natural, se sinta segura, capaz de gerir os desafios que surgirão a qualquer momento. Na escola, também. “Uma criança feliz, tranquila, competente pessoal, social e emocionalmente terá maior probabilidade de ter sucesso acadêmico e estar preparada para os desafios mais formais da educação, porque serão também crianças mais motivadas intrinsecamente”.
Nesta fase, é importante criar desafios e situações adequados às características e fases de crescimento da criança para desenvolverem a sua capacidade de resolução de problemas. “A criança deve saber que pode ser difícil, mas que é possível tentar e, no meio disso, os adultos precisam ajudá-la a saber errar – até porque na escola ela irá errar para aprender. Como tal, saber acima de tudo errar, confrontar-se com o erro e com a nova tentativa e saber que isso faz parte da aprendizagem de todos nós, até dos pais”. Para a psicóloga, faz parte da educação “ajudar a criança a arriscar, a compreender os riscos e a tomar decisões com os riscos que tem, seja numa simples escolha de duas hipóteses de brincadeira”.
Nos primeiros anos de vida, é fundamental experimentar, desenvolver competências artísticas e a agilidade motora. É tempo de se conectar com outras crianças, jovens e adultos, desenvolver a socialização, saber estar e partilhar, ouvir e conversar. É tempo de brincar com meninos e com meninas, com bonecas, carrinhos, animais ou quebra-cabeças. “Nesta fase, a brincadeira com a criança é o maior motor de desenvolvimento de todas estas capacidades essenciais para o que se segue”. A brincadeira é um meio para tornar as aprendizagens naturais, descontraídas, fáceis, e eficazes, e ainda criar vínculos afetivos com a criança.
Se a criatividade e imaginação forem estimuladas, o interesse pela leitura, escrita
e matemática vão surgir naturalmente.
A criatividade e a imaginação também têm um papel importante. “Ajudar a criar e a imaginar, seja por histórias, teatros caseiros, brincadeiras de tapete ou músicas é fundamental para a preparação da criança para a fase das aprendizagens escolares. Na fase pré-escolar, a criatividade de todas as formas é um grande recurso e um ingrediente que se pode usar bastante, a par com a curiosidade”. Para isso, ajuda-se a olhar para o que a rodeia, estimula-se o questionamento, responde-se quando pergunta, pergunta-se também, procuram-se respostas.
Saber escrever o nome, decorar letras, contar até 20 sem enganos poderá vir noutro tempo, quando o 1.º ciclo chegar. Rita Castanheira Alves considera que há muito para se fazer antes disso. “Com o foco e investimento nestas competências pessoais, sociais e emocionais, gradualmente e antes do 1.º ciclo, a vontade da criança em saber o seu nome, em aprender a contar e a mostrar sinais de que está preparada para a aprendizagem escolar aparecerá espontaneamente. Vale a pena tentar”, diz.

Brincar é como respirar

Não é preciso adiantar conteúdos do Ensino Fundamental na primeira infância – 
as brincadeiras guiadas e livres estimulam todas as competências mais necessárias.
Até aos 6 anos, a criança se encontra numa fase de acelerado desenvolvimento em vários níveis: físico, motor, social, cognitivo, emocional e linguístico. Desenvolvimento e aprendizagem andam de mãos dadas. As relações e interações que os  pequenos estabelecem entre si e com os adultos, as experiências proporcionam novas aprendizagens, tudo isso contribui para o desenvolvimento.
Para Cristina Parente, professora auxiliar do Departamento de Estudos Integrados de Literacia, Didática e Supervisão, do Instituto de Educação da Universidade do Minho, é importante apreender quem é a criança. A criança quer conhecer e compreender o mundo que a rodeia, tem saberes e experiências e, por isso, faz perguntas e envolve-se em projetos para encontrar respostas para as suas curiosidades. A criança coloca desafios aos pais, à creche, ao jardim de infância, à comunidade. “Esta compreensão desafia os pais e os educadores a proporcionar as melhores oportunidades de aprendizagem e desenvolvimento, desde cedo, às crianças, tendo como referência a necessidade de educar cada um até ao limite das suas possibilidades, procurando, ao mesmo tempo, conseguir a integração de todos”.
A criança cresce, aprende, desenvolve-se através de interações que estabelece com as pessoas que a amam, que cuidam dela, que lhe dão segurança, que estão atentas às suas características e que a desafiam. “De fato, o processo de educação da criança ocorre entre os contextos de educação não formal e os contextos de educação formal, entre os quais se destacam a família e os centros de educação de infância”, refere Cristina Parente.
“Naturalmente, a criança constrói muitas aprendizagens e se desenvolve nos contextos da educação informal através dos processos de socialização nas relações intrafamiliares e extrafamiliares. Mas este tipo de resposta, por si só, parece não ser suficiente, tendo em conta as muitas solicitações das famílias e os limitados apoios na sociedade atual urbanizada, globalizada e multicultural. O contexto da educação de infância emerge como uma alternativa mais consistente e integrada para, em colaboração com as famílias, responder ao desafio da educação das crianças pequenas”, sublinha a professora do Instituto da Criança da Universidade do Minho.
Segundo Maria José Araújo, professora da Escola Superior de Educação do Porto, nos primeiros anos de vida, e não só, é importante brincar e criar condições para que as crianças brinquem. “Brincar é muito importante em todas as fases da vida, mas nesta fase é fundamental. Para a criança é como respirar”, garante. A socialização também tem uma palavra a dizer. “É com o grupo de pares, com outras crianças que criam e recriam as culturas da infância”. “É fundamental conversar com os filhos e garantir uma instituição de pré-escolar que valorize o brincar e o diálogo”, sublinha.
É através de atividades lúdicas e jogos que as crianças aprendem 
a seguir regras e respeitar o outro.
Os pais devem, na sua opinião, saber respeitar os tempos e os ritmos das crianças e compreender que brincar garante equilíbrio e bem-estar. Há um erro que convém evitar: há pais e encarregados de educação que procuram no pré-escolar conteúdos do primeiro ano do 1.º ciclo. “A escola é muito importante e é por isso mesmo que, antes de entrar para o 1.º ciclo do Ensino Básico, mas também durante, o mais importante é criar condições para que as crianças brinquem”.
É preciso, sublinha, valorizar as brincadeiras das crianças como elementos essenciais de relação com a natureza e com a cultura do mundo adulto. Ao longo da vida, elas precisam de atividades equilibradas. “As crianças aprendem regras de cooperação e respeito brincando. É essencial que os educadores compreendam isso e valorizem”. Brincar é, afinal de contas, um direito. “O brincar e as brincadeiras, enquanto manifestações coletivas, ajudam a criança a desenvolver relações sociais com o seu grupo de pares e com os adultos, apelando à memória coletiva”, realça Maria José Araújo

Rita Castanheira Alves

Fonte: Pesquisas na net

Sobre os Bebês...

Imagem da net

Os 2 princípios da Abordagem Pikler para humanização e cuidado com bebês


Bebês são pequenos, choram e dependem dos adultos para a maioria de suas atividades rotineiras. Ou é assim que a maioria das pessoas pensa.
A responsabilidade do adulto é tão grande, que muitas vezes este esquece que o bebê, mesmo com poucos meses de vida, é um ser humano com um universo próprio.
Um ser humano que está conhecendo e aprendendo a viver em nosso admirável mundo novo.
Emmi Pikler, médica húngara e criadora da Abordagem Pikler, dedicou-se ao estudo dos bebês de 0-3 anos, observando o comportamento dos pequenos e criando um modelo de cuidado, que inspirou creches e instituições de ensino infantil por toda a Europa.
Seu trabalho começou logo após a Segunda Guerra Mundial, quando assumiu a coordenação do Instituto Lóczy em Budapeste, que até hoje atende crianças órfãs e abandonadas.
Durante muitos anos, Emmi Pikler e sua principal colaboradora, Dra. Judit Falk, iniciaram uma revolução no cuidado dos bebês, focando principalmente em dois aspectos: segurança afetiva e motricidade livre.

Segurança afetiva que faz crescer

A concepção da segurança afetiva começa com a transformação da visão do adulto, que deve entender que cada criança é única e cheia de singularidades e que, seu desenvolvimento, depende principalmente da relação com os adultos, materiais e objetos ao seu redor.
Logo, o profundo respeito pela criança pequena é essencial, uma vez que devemos entender que ela já é uma pessoa, com expectativas próprias, necessidades e idiossincrasias.
O reconhecimento do adulto sobre este aspecto influencia diretamente tanto nos chamados rituais cotidianos, como também para o desenvolvimento psíquico e emocional da criança. Torna-se importante, portanto, saber observar a criança para entender suas individualidades.
A segurança afetiva é então construída diariamente, por meio do vínculo entre cuidador e bebê, além da repetição das ações que conferem certa estabilidade na relação.
O olhar, a comunicação verbal e os gestos durante as atividades diárias, como alimentação, banho e soneca, são essenciais para a criação desse laço. Cada um desses aspectos possui uma técnica especifica, segundo a Abordagem Pikler e seus fundamentos.

Motricidade livre e conquistas

Como citado anteriormente, os bebês possuem expectativas. A motricidade livre permite que os bebês desenvolvam aspectos de postura corporal próprios, conscientes, harmônicos e seguros. Isso acontece, pois parte da vontade da própria criança e não como uma interferência externa originada do adulto.
Emmi Pikler trata também da relação entre o ambiente, outras crianças ou adultos e objetos, quando cita que “a saúde somática e psíquica, a noção de interação do indivíduo com seu meio se integram indissociavelmente e naturalmente desde o começo”.
No ambiente livre, as crianças brincam, exploram objetos, texturas e possibilidades, de forma tranquila e ao mesmo tempo ativa. É possível observar, por exemplo, bebês que caminham de forma segura pelo ambiente preparado para sua segurança, relacionam-se de forma consciente com objetos e outras crianças, sempre de forma tranquila e autônoma.
O papel do adulto, portanto, não é de interferir nas atividades das crianças ou estimular suas brincadeiras, mas de garantir que elas encontrem segurança e apoio.
Só assim serão encorajadas a explorarem e aprenderem cada vez mais sobre este mundo, crescendo para serem jovens e adultos independentes, além de saudáveis física e psicologicamente.

Fonte: http://www.aegisconsultoria.com.br/blog/os-2-principios-da-abordagem-pikler-para-humanizacao-e-cuidado-com-bebes/
Adaptações: Heloisa Pedroza Lima

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Ensinar a linguagem escrita vai além de ensinar a escrever letras.

A apropriação da escrita como um instrumento cultural complexo


Imagem: Internet


Nesta exposição, pretendo trazer a minha leitura das contribuições do Vygotsky acerca do processo de aquisição da escrita. Parto da idéia de que muito do que temos feito com a educação das nossas crianças carece de uma base científica e que, frente aos novos conhecimentos que temos hoje e que já nos permitem falar em uma nova ciência — a ciência da educação —, podemos perceber alguns equívocos nas práticas que muitos de nós realizamos na educação das crianças e, a partir da percepção e de uma atitude que busque a superação desses equívocos, podemos buscar maneiras de melhorar o que estamos fazendo e a maneira como trabalhamos para garantir isso que todos queremos e que é a maior conquista que a educação pode permitir: a formação e o desenvolvimento máximo da inteligência e da personalidade das crianças. A apropriação da escrita como um instrumento cultural complexo é elemento essencial na formação da inteligência de cada sujeito.
Ao apresentar essa leitura de Vygotsky pensando a apropriação da escrita pela criança entre 0 e 10 anos, vou defender a idéia de que até agora temos contaminado, por assim dizer, a educação infantil com as tarefas típicas do ensino fundamental e que, de agora em diante, frente aos novos conhecimentos sobre o processo de desenvolvimento das crianças, trata-se de fazer o inverso: deixar contaminar o ensino fundamental com atividades que julgamos típicas da educação infantil — ainda que, muitas vezes, elas não estejam mais contempladas na educação das nossas crianças pequenas. Falo das atividades de expressão como o desenho, a pintura, a brincadeira de faz-de-conta, a modelagem, a construção, a dança, a poesia e a própria fala. Estas atividades são, em geral, vistas como improdutivas — seja no ensino fundamental, seja na educação infantil —, mas, na verdade, são essenciais para a formação da identidade, da inteligência e da personalidade da criança, além de serem fundamentais para a apropriação efetiva da escrita, uma vez que, como afirma Vygotsky, a mão escreve o desejo de expressão da criança e esse desejo de expressão precisa ser exercitado e cultivado para chegar a ser escrito.
Vou explorar as idéias de Vygotsky contidas num texto que ele chamou “O desenvolvimento da linguagem escrita” (1995) onde, em síntese, critica as formas como na década de 20 na antiga União Soviética e como ainda hoje entre nós apresentamos a escrita para as crianças. Para o Autor, ao enfatizar a escrita e o reconhecimento das letras, acabamos por ensinar às crianças o traçado das letras, mas não ensinamos a linguagem escrita. E dizia, ainda, que essa forma de apresentação da escrita exige “enorme atenção e esforços por parte do professor e do aluno, e devido a tal esforço o processo se transforma em algo independente, em algo que se basta a si mesmo enquanto a linguagem viva passa a um plano posterior” (p. 183). Ou seja, ao começar pelo aspecto técnico e ao dedicar tanto tempo a ele, nos esquecemos da função social para a qual a escrita foi criada: nos esquecemos que a escrita foi criada para responder à necessidade de registro, de expressão e comunicação com o outro distante no tempo e no espaço. Por isso, de um modo geral, “nosso ensino ainda não se baseia no desenvolvimento natural das necessidades da criança, nem em sua própria iniciativa: lhe chega de fora, das mãos do professor e lembra a aquisição de um hábito técnico”.
Ao mesmo tempo, apontava a complexidade da aquisição da escrita explicando que a escrita é uma representação de 2a. ordem: “se forma por um sistema de signos que identificam convencionalmente os sons e palavras da linguagem oral que são, por sua vez, signos de objetos e relações reais” (p. 184). Dessa forma, a escrita representa a fala que, por sua vez, representa a realidade. Assim a fala, como representação da realidade se interpõe entre a realidade e a escrita. No entanto, para que haja efetivamente a apropriação da escrita, o nexo intermediário representado pela fala deve desaparecer gradualmente e a escrita deve se transformar em um sistema de signos que simbolizam diretamente os objetos e as situações designadas. Ou seja, um leitor, ao ler, busca a realidade e não os sons por trás da palavra escrita. Da mesma forma, um produtor de textos ao escrever busca registrar essencialmente sentimentos, informações, experiências vividas e não os sons de palavras que representam essas experiências. Por isso, alertava, o ensino da escrita não pode ser tratado como uma questão técnica; a escrita precisa ser apresentada à criança como um instrumento cultural complexo, um objeto da cultura que tem uma função social. Para pensar diretrizes para o ensino da escrita, Vygotsky lembrava, em primeiro lugar, que escrita não começa quando a criança pega no lápis pela primeira vez, mas começa no primeiro gesto, quando, ainda bebê, ela tenta se expressar e se comunicar. Lembrava, com isso, que a história da escrita é a história do desejo de expressão da criança. Por isso, todas as atividades de expressão — que em geral ocupam lugar de segunda categoria em nossas escolas, como a expressão oral, o desenho, o faz-de-conta, a modelagem, a pintura — precisam ser estimuladas e cultivadas se quisermos que as nossas crianças se apropriem da escrita como leitoras e produtoras de texto. A escrita registra nosso desejo e necessidade de comunicação e expressão … a vivência de experiências significativas cria necessidades de expressar-se e comunicar-se.
Lendo Vygotsky, entendo que o maior equívoco que cometemos no processo de ensino da escrita é a utilização de um método artificial criado especialmente para ensinar a criança a escrever e que enfatiza o domínio da técnica e não considera nem cria a necessidade da escrita na criança. Para Vygotsky, da mesma forma que a linguagem oral é apropriada pela criança sem grandes esforços, a partir da necessidade de se comunicar com os outros — necessidade que é criada nela ao viver numa sociedade que fala —, a escrita precisa se tornar uma necessidade da criança que vive numa sociedade que lê e escreve. Para isso, dizia ele, a escrita precisa ser apresentada não como um ato motor mas como uma atividade cultural complexa, considerando o uso social para o qual foi criada. Quando a criança convive com situações reais de leitura e escrita, na escola ou em casa, ela cria para si a necessidade da escrita e, quando no início do processo de aquisição da escrita está a necessidade da criança de escrever, a escrita fará sentido para ela. Como diria Vygotsky, nesse caso, a escrita não lhe chegará de fora como uma imposição do outro. 
Quando cultivamos nas crianças o desejo de expressão, quando criamos nelas a necessidade da escrita e quando utilizamos a escrita considerando sempre sua função social, estaremos respondendo ao apelo de Vygotsky para que os educadores ensinem às crianças a linguagem escrita e não as letras.
Na verdade, o equívoco que me parece essencial corrigir em relação às nossas práticas tradicionais é o de pensar que as crianças — seja na educação infantil, seja no ensino fundamental — aprendem quando ouvem informações da professora ou quando executam atividades escolares pensadas pela professora para preencher o tempo da criança na escola. Para aqueles que partilham desse modo de pensar, o bom aluno é aquele que ouve e executa as tarefas que a professora propõe e que permite que a professora “passe” para a turma a maior quantidade de conteúdo escolar.
Retomando a teoria histórico-cultural, a criança que aprende é ativa no processo de aprender. O que isso significa? Que ela aprende quando é sujeito do processo de conhecimento e não um elemento passivo que recebe pronto o conteúdo do ensino. No processo de relacionar-se com o mundo e de apropriar-se dos objetos que o compõem (a linguagem, os objetos materiais e não materiais, os instrumentos, as técnicas, os hábitos e os costumes, os valores, enfim o conjunto da cultura humana) a criança atribui sentido a tudo o que vê, experimenta, conhece. Só a criança que está em atividade é capaz de atribuir um sentido ao que realiza. E o que significa estar em atividade? Significa a criança saber o que está fazendo, para que faz e estar motivada pelo resultado daquilo que realiza. Quanto maior for a participação da criança na escola dando a conhecer suas necessidades de conhecimento — que poderão ser aproveitadas ou transformadas pela escola conforme seu grau de humanização ou alienação —, trazendo elementos que ajudam a dar corpo à atividade, participando na definição da forma de realização das tarefas, na organização do plano do dia, na organização do espaço… enfim, quanto maior a presença intelectual da criança na escola, maior a possibilidade de que a tarefa proposta se configure como uma atividade significativa para a criança. Por isso, não se trata de garantir que a criança receba uma quantidade de informação sem que ela tenha tempo para apropriar-se dela, atribuir-lhe um sentido e expressar o sentido que atribui à apropriação. A informação será apropriada apenas se a criança puder interpretá-la e expressá-la sob a forma de uma linguagem que torne objetiva esta sua compreensão – que pode ser a fala, um desenho, uma maquete, uma escultura, um jogo de faz-de-conta, uma dança ou mesmo um texto escrito numa situação em que, se as crianças não escrevem, a professora é a escriba da turma. É um processo de diálogo que se estabelece entre a criança e a cultura, processo esse que, na escola, é mediado pela professora e pelas outras crianças. Isso implica, essencialmente, dar voz à criança e permitir sua participação na vida da escola, num projeto que é feito com elas e não para elas ou por elas.
Em nosso desejo de garantir que as crianças aprendam o mais cedo possível a ler e a escrever — e esse é outro equívoco das nossas práticas recentes: pensar que quanto mais cedo a criança se alfabetizar, mais sucesso ela terá na escola e na vida —, preenchemos o tempo que a criança passa na escola infantil com “atividades” de escrita, que são, de um modo geral, tarefas de treino de escrita de letras e sílabas e palavras. Esse treino de escrita não é uma atividade expressão, pois, em geral, começamos pelas letras — com as quais as crianças não podem ainda expressar uma idéia, uma informação, uma intenção de comunicação. De um modo geral, insistimos no reconhecimento das letras — com as quais a criança não lê nada. Esse trabalho com as letras e sílabas dificulta a concentração da criança, uma vez que não faz sentido para ela e, por isso, acaba por tomar o maior tempo da atividade na escola infantil e todo o tempo da criança na escola fundamental.

Além disso, a criança, de um modo geral, não tem ainda as bases para essa aprendizagem complexa que é a escrita — nem na escola infantil, quando justamente o trabalho educativo deve formar essas bases, nem na escola fundamental, já que a antecipação das atividades de alfabetização do ensino fundamental para a educação infantil que tem infelizmente se tornado uma prática comum impede que essas bases se formem. Por isso, as atividades de treino propostas na escola exigem um esforço enorme da criança e têm poucas chances de responder às expectativas da professora. Ou seja, a criança passa um longo período na escola infantil, realizando enfadonhas tarefas de escrita que não têm sentido para ela, pois não expressam seu desejo de expressão, e que tampouco são bem recebidas pela professora que, em seu desejo equivocado de que a criança aprenda cedo a ler e a escrever, enfatiza os erros e pouco valoriza os acertos. Com isso, a criança vai acumulando uma história de fracasso e de cansaço em relação à escola.
Essa atividade de treino de escrita de letras ou sílabas ou palavras e até mesmo de textos que não expressam o desejo de comunicação e expressão das crianças vai, aos poucos, tomando o lugar de todas as demais atividades que deveriam ter lugar na escola privilegiando a cultura da expressão. Em outras palavras, com um olhar orientado pela crítica de Vygotsky, perceberemos que por um longo período — durante o qual a criança se aproxima da escrita — fechamos para a criança os canais de expressão na escola: para as formas pelas quais ela poderia se expressar — a fala, o desenho, a pintura, o faz-de-conta…que formam as bases necessárias para a aquisição da escrita —, não há tempo porque ela está ocupada com a escrita e, pela escrita ela não pode se expressar ainda, porque está ainda aprendendo as letras. Sem exercitar a expressão, o escrever fica cada vez mais mecânico, pois sem ter o que dizer, a criança não tem por que escrever.

Em relação a tudo isso, há ainda uma questão séria para a qual temos dado pouca atenção. Refiro-me ao sentido que levamos a criança a estabelecer com essa escrita sob a forma de treino e que marca a relação que ela vai estabelecer com a escrita no futuro: ao enfatizar o aspecto técnico, começando pelo reconhecimento das letras e gastando um tempo enorme numa atividade que não expressa informação, idéia, ou desejo pessoal de comunicação ou expressão, acabamos por ensinar a criança que escrever é desenhar as letras, quando de fato, escrever é registrar e expressar informações, idéias e sentimentos.
Para ilustrar essa discussão, vale contar o caso de um menino de 6 anos, que freqüenta uma escola infantil onde as crianças realizam todos os dias atividades de escrita. Ao perceber a pesquisadora que escreve, se aproxima e pergunta:
— Moça, o que você está fazendo?
— Estou escrevendo!
— Por quê?
— Para eu ler depois e me lembrar do que eu vi.
— Quem mandou?

Nesse diálogo se percebe a concepção de escrita que a escola apresentou para a criança: escrevemos o que alguém manda. Ao que tudo indica, em nenhum momento a escola apresentou para esse menino a idéia de que a escrita serve para a comunicação com os outros, para expressar o que sentimos, pensamos, aprendemos, para divulgar uma idéia, para lembrar. Para esse menino, muito provavelmente, escrever é escrever letras e, também muito provavelmente, quando se defrontar com um texto, vai buscar nele as letras e não vai entender nada, porque no texto estarão idéias e informações e não letras, sílabas e palavras. Depois de tanto tempo gasto com o treino de escrita, percebemos que ele não serviu para avançar o desenvolvimento cultural dessa criança. Nem poderia, pois, lhe ensinaram as letras, mas não a linguagem escrita que é muito mais complexa e envolve muito mais do que o aspecto técnico.
Para Vygotsky (1995), a linguagem escrita tem uma história que começa com o gesto do bebê que ainda não fala e aponta o objeto que deseja. Do gesto, essa história da escrita passa, a partir da linguagem oral, pelo desenho e pela brincadeira de faz-de-conta antes de chegar à escrita. Com isso entendo que a história da aquisição da linguagem escrita é a história da formação e do desenvolvimento do desejo de expressão na criança. É a criança que quer se comunicar que está por trás do gesto, da fala, do desenho, da brincadeira. É, igualmente, a criança que quer se comunicar que precisa estar por trás da mão que escreve. Por isso, do meu ponto de vista, um equívoco que estamos cometendo na escola — infantil e fundamental — é barrar todas as formas de expressão da criança e concentrar todas as nossas forças na atividade de treino da escrita, que da forma como temos realizado nem se constitui como atividade de expressão para a criança.
Voltemos ao caso do menino citado acima. Se ele vivesse na escola muitas experiências significativas, pudesse fazer muitas descobertas, tivesse um tempo para contar sobre elas para o grupo, e a professora tivesse por hábito registrar por escrito esses relatos; se ele tivesse um tempo para contar as histórias vividas fora da escola, e que a professora também registraria; se juntos — crianças e professora — fizessem um registro das histórias preferidas ouvidas na escola; se juntos se acostumassem a fazer um diário ao fim de cada dia onde registrassem as atividades realizadas, os acontecimentos do dia e a percepção do grupo em relação às experiências vividas, então a escrita faria sentido para ele e sua aquisição seria uma necessidade dele, não uma necessidade da professora e dos pais.
Por isso defendo a necessidade da criança — seja na educação infantil, seja no ensino fundamental — expressar-se por meio das muitas linguagens possíveis. Com isso, não quero excluir a linguagem escrita. Ao contrário, quero incluí-la de modo a se tornar mais uma linguagem de expressão das crianças. O fato é que essas linguagens não podem estar separadas, nem entre si e nem separadas de experiências significativas que tragam conteúdo à expressão das crianças nas diferentes linguagens. Se as crianças puderem conviver com a escrita e com a leitura — realizadas inicialmente pela professora — enquanto vivem muitas experiências significativas — por exemplo, conhecendo o espaço por meio de passeios pelos arredores da escola, pelo bairro, pela cidade; conhecendo pessoas por meio de visitas, de aproximação com as pessoas que trabalham na escola, de visita dos pais, mães e avós da turma à escola, de leitura de histórias, de poesias, de audição de música, de filmes —; se puderem conhecer mais sobre os assuntos que chamam sua atenção por meio de observação e experimentação na natureza, leitura, vídeo, conversa com especialistas e se depois puderem comentar essas experiências e registrá-las por meio de desenho, pintura, colagem, modelagem, brincadeiras e teatro de fantoches — a leitura e a escrita constituirão o próximo passo que a criança vai querer dar em seu processo de apropriar-se do mundo.
Com isso, quero dizer que se queremos que nossas crianças leiam e escrevam bem e se tornem verdadeiras leitoras e produtoras de texto — o que, de fato, é uma meta importantíssima do nosso trabalho como professores —, é necessário que trabalhemos profundamente o desejo e o exercício da expressão por meio de diferentes linguagens: a expressão oral por meio de relatos, poemas e música, o desenho, a pintura, a colagem, o faz-de-conta, o teatro de fantoches, a construção com retalhos de madeira, com caixas de papelão, a modelagem com papel, massa de modelar, argila, enfim, que as crianças experimentem os materiais disponíveis que a escola e a educadora têm como responsabilidade ampliar e diversificar sempre. Essa necessidade de expressão — é sempre importante lembrar — surge a partir do que as crianças vêem, ouvem, vivem, descobrem e aprendem. Quando essas experiências são registradas por escrito por meio de textos que as crianças produzem e a professora registra com as palavras das crianças, garantimos a introdução adequada da criança ao mundo da linguagem escrita, utilizando a escrita para cumprir a função social para a qual ela foi criada. Quando fazemos isso, o sentido que a criança atribui à escrita coincide com sua função social. Deste ponto de vista, podemos dizer que a criança verdadeiramente se apropria da escrita como um instrumento cultural complexo a assim a utilizará.
Entretanto, é importante lembrar que este trabalho começa não por propor atividades de escrita para a criança, mas por estimular e exercitar seu desejo de expressão. Fazemos isso quando a deixamos contar suas histórias de vida e de imaginação para o grupo — e também contando histórias para ela, histórias que ela vai recontar depois. Também estimulamos e exercitamos seu desejo de expressão quando estimulamos sua observação, quando solicitamos rotineiramente sua opinião sobre os problemas e os temas discutidos na sala, quando solicitamos sua participação na solução de problemas surgidos na turma, quando avaliamos o dia vivido na escola junto com todo o grupo, quando chamamos sua participação para o estabelecimento das regras e dos combinados, para a organização da rotina e do plano do dia. Também estimulamos sua expressão quando deixamos no horário diário — que pode ser inicialmente semanal no ensino fundamental para que a professora perceba sua importância — um tempo para uma atividade livre que a criança vai escolher entre as possibilidades existentes na sala ou na escola e depois vai relatar para a turma o que fez nesse tempo e por que foi interessante. Em breves palavras: é uma questão de permitir à criança exercitar seu papel de protagonista neste seu processo de aprender e se tornar um cidadão. Isso implica dar-lhe voz, tratá-la como alguém que, se não sabe, é capaz de aprender. Desse ponto de vista, resolvemos vários problemas ao mesmo tempo: permitimos, em primeiro lugar, que ela forme uma imagem positiva de si mesma, condição emocional fundamental para aprender qualquer coisa. Ao trazer sua história para a escola, ao formular e expressar opiniões, ao propor soluções para os problemas vividos no grupo, ao expressar suas idéias, angústias e sentimentos, a criança deixa de ser um anônimo e passa a ser alguém que tem uma identidade no grupo. Em segundo lugar, possibilitamos que se sinta parte da escola. Essa sensação de pertencimento é um correlato essencial da disciplina — cuja causa primeira é o sentimento de exclusão, e não a pobreza ou a desagregação da família tradicional, como muitos de nós pensamos. Em terceiro lugar, esse envolvimento da criança na vida da escola promove sua expressão oral que é condição essencial para o desenvolvimento da inteligência. As palavras são a matéria com que trabalha o pensamento; se faltam as palavras, falta o pensamento. A palavra estabiliza um sentido, organiza o mundo para aquele que passa a ver e conhecer a cultura humana e a natureza; com ela, ampliamos nossa memória, nosso conhecimento do mundo, o controle da nossa própria conduta que se exerce pela linguagem interna.
Pesquisas têm demonstrado que sob as condições adequadas de vida e de educação, as crianças desenvolvem intensamente — e desde bem pequenas — diferentes capacidades práticas, intelectuais e artísticas. No entanto, isso não nos deve levar a pensar que podemos abreviar a infância para apressar o desenvolvimento de sua inteligência e de sua personalidade. Em cada idade da vida há uma forma explícita da relação do ser humano com o mundo e é esta a forma por meio da qual o sujeito mais aprende. Na idade pré-escolar, essa atividade é o brincar e todas as formas de expressão que a criança aprende.
Na idade escolar, essa atividade será o estudo. No entanto é importante considerar que a compreensão e interpretação que a criança faz do que estuda precisará ser sempre objetivada, expressa pela criança e não há qualquer fundamentação científica que justifique que essa expressão deva ser restrita a uma única linguagem. Ao contrário, é do exercício de múltiplas linguagens que a expressão se fortalece.
Ao mesmo tempo, é importante lembrar que a passagem do brincar ao estudo como atividade por meio da qual a criança mais aprende não acontece como num passe de mágica, de um momento para o outro. Ao contrário, é um processo por meio do qual, aos poucos, a criança vai deixando de se relacionar com o mundo por meio da brincadeira e começa a fazer do estudo sua atividade principal. Enquanto esse processo acontece, respeitamos um tempo livre na escola fundamental para que a criança possa viver ainda um tempo de brincar, de fazer-de-conta, de ser criança.

Por tudo isso, defendo a idéia de que devemos com urgência “descontaminar” a escola da infância dos procedimentos típicos do ensino fundamental e “contaminar” o ensino fundamental com procedimentos — como as atividades de expressão — que devemos ter como típicos da escola infantil e que, para o bom desenvolvimento da inteligência e da personalidade das crianças, devem estar presentes também nas séries iniciais do ensino fundamental.
Fonte:http://www.ateliegiramundo.com/#!blogger/cwqd/post/5441467557695886597
Referência Bibliográfica
VYGOSKY, L. S. El desarrollo del lenguaje escrito. In: Obras Escogidas, Madrid: Visor, v. 3, 1995.
Texto de Suely Amaral Mello 
MELLO, S. A. A Apropriação da Escrita como Instrumento Cultural Complexo. In: MENDONÇA, S. G. de L. e MILLER, S. (Orgs). Vigotski e a Escola Atual: fundamentos teóricos e implicações pedagógicas. Araraquara: J.M. Editora e Cultura Acadêmica Editora, 2010. 2ª edição.