domingo, 28 de junho de 2015

O desenho é linguagem?

Então não precisa de legenda... 
Para compreender e, principalmente, respeitar o desenho infantil, não basta apenas saber sobre as teorias do desenho, as fases de seu desenvolvimento ou significações psicológicas sobre o grafismo infantil; o educador precisa saber da sua própria produção, da sua expressão, da sua linguagem.
Onde está o seu desenho? Ainda o leva consigo ou foi deixado no meio do caminho, entre a casa e a escola, entre a infância e a juventude? 
Toda criança desenha, mas ao longo da vida, influenciada sobretudo pelos processos escolares, vai abandonando sua produção e então chega à vida adulta sem saber qual é o seu traço, qual é a sua marca. Vai perdendo a capacidade de designar, de afirmar-se produtora de sentidos, sujeito criador de mundos, pois o desenho é uma espécie de projeto, uma “[...] possibilidade de lançar-se para frente” (MOREIRA, 2002, p. 15). 
Quem já não ouviu dizer que o desenho é linguagem, assim como o gesto e a fala? Afirmar que desenho é linguagem, é compreendê-lo como produção carregada de significado. Ao desenhar, a criança diz de si e do mundo que está conhecendo, descobrindo, desvendando: “O desenho é a manifestação de uma necessidade vital da criança: agir sobre o mundo que a cerca; intercambiar, comunicar” (DERDYK,1989, p. 51). 
O desenvolvimento gráfico da criança não é linear. É repleto de idas e vindas, avanços e recuos, porque é justamente um processo. Desenhando, vai deixando suas marcas no papel ou em qualquer superfície disponível (as paredes, o chão) e, desta forma, a criança vai contando sua história, passando por um intenso processo existencial, de transformações, em que cognição e sentimento estão juntos, intimamente ligados. Segundo Derdyk: A criança enquanto desenha canta, dança, conta histórias, teatraliza, imagina ou até silencia... O ato de desenhar impulsiona outras manifestações, que acontecem juntas, numa unidade indissolúvel, possibilitando uma grande caminhada pelo quintal do imaginário. (DERDYK, 1989, p.19). 
Se o educador não compreende o desenho da criança como um processo de criação, como linguagem que é, pode reforçar equívocos em sua prática, tais como a utilização do desenho pronto para colorir (antigamente mimeografado, hoje, xerocado ou impresso) e da cópia. Afinal, se “[...] a arte se define justamente pela diversidade, por propor algo que é pessoal e único (...) temos que descartar toda atividade que tenha como ponto de partida a uniformidade” (MOREIRA, 2002, p. 84). 
Outro equívoco, muito comum na educação infantil, revela-se nas intervenções do professor sobre o desenho da criança, seja escrevendo/nomeando com sua letra “o que” a criança desenhou, seja dando aquela “ajeitadinha”, o “retoque final”, para a exposição, para colocar na pasta, para mostrar aos pais... Equívoco, sim, pois na verdade temos aí a negação do desenho como linguagem. Por quê? Ora, se o desenho é linguagem se constituindo que expressa, comunica e diz de um processo vivido, deve valer por si mesmo e não pela “legenda” que o professor coloca! A escrita sobreposta ao desenho, explicando o que é, corresponde à linguagem e ao desejo do adulto, não das crianças; principalmente quando são pequeninas, rabiscando, garatujando, experimentando o prazer do gesto, encantando-se com a mágica das marcas produzidas com seu corpo no papel. O adulto se esforça tremendamente para conseguir enxergar figuras nos desenhos das crianças: ele tem dificuldades de permanecer “em suspensão”. Sente uma necessidade imperiosa de nomear figuras, como se a figuração fosse sinônimo de maturidade intelectual e habilidade motora. (DERDIK, 1989, p. 141). 
Parece que o adulto “não aguenta” o processo da criança, suas experimentações, seu desordenamento, seus rabiscos... Em tudo, o adulto quer colocar ordem – a sua ordem – nomear, enquadrar e, então, acaba por interferir indevidamente na produção das crianças. Acaba por silenciar a voz da criança, restringindo seu processo de criação. Se as crianças contam histórias ao desenhar, o adulto interessado por suas aventuras poderá escrever (por exemplo, no verso do papel desenhado) a história do desenho, e não palavras soltas, que buscam apenas identificar “as figuras”. 
Se a criança assim o desejar e permitir, esse momento pode ser uma oportunidade rica para o diálogo contribuindo, inclusive, para a estruturação do discurso oral da criança. A pergunta, “qual é a história do seu desenho?”, pode remeter o seu produtor a pensar sobre o processo e organizar o pensamento para expressá-lo. Porém, que isso não se transforme em mais uma atividade didática! Como nos indica Edith Derdik (1989) há uma identidade entre a criança e seu desenho, no qual produção e produtor se fundem. Ao desconsiderarmos o desenho em processo, estaremos igualmente desconsiderando a criança, sua história, seus sentimentos, seus sonhos, suas experiências. Mais do que um exercício, o desenho como produto é sua vida, portanto, esta não pode ser desvalorizada. 
Não é mesmo espantoso e radical mergulhar nessa concepção? O que pareceria um simples desenho, um rabisco apenas, bolinhas esparsas, indícios de esquemas, é toda uma vida! É preciso ter muito cuidado para não negarmos aos meninos e meninas esse espaço vital de criação e construção de pensamento. 
Pensemos, agora, na organização dos tempos e espaços no cotidiano educativo: desenha- se quando sobra tempo, não pode sujar a sala, acabou o tempo, recolhe a produção, só tem lápis de cor e giz de cera, folha A4 de papel branco... E, depois disso, pretende-se que as crianças “saibam desenhar” assim, de uma hora para outra. 
Para aprender a desenhar, é preciso desenhar muito, sempre! A constância no fazer é que vai consolidar novas aquisições nas formas da produção gráfica. Com diferentes materiais, em diferentes suportes, com tamanhos diversos. A cada material, tamanho de papel, por exemplo, será acionada uma nova experiência, colocando novas perguntas, propostas de exploração, busca de respostas e soluções para essa produção.

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