domingo, 2 de agosto de 2015

Ler na primeira infância

Há 27 anos nascia em Bogotá, na Colômbia, uma livraria especializada em literatura infantil. Nesse lugar cresceu uma equipe multidisciplinar que buscava oferecer opções para o desenvolvimento cultural de crianças, pais, bibliotecários e educadores. Amparado pela prática e pela teoria, o trabalho se perguntou: como ocorrem os vínculos afetivos que, desde o começo da vida, conectam o ser humano com a necessidade de se decifrar, de se inscrever no mundo do simbólico, e de encontrar nos livros alternativas para o desenvolvimento de sua personalidade?
Hoje, o Espantapájaros abriga uma Bebeteca modelo que, assim como o espantalho, não tem sua sina concretizada – ao invés de espantar, abriga as asas da imaginação infantil. É um espaço no qual bebês e crianças vão para ouvir histórias, escolher os livros que querem levar para casa, participar de ateliês. Mas que, assim como uma boa história, não se restringe ao mundo físico. Se espalha por meio de projetos que levam a sua ideia central a outros lugares: onde houver crianças, adultos, e uma cesta de livros, uma bebeteca é possível.
A responsável pelo início da magia é a especialista em literatura Yolanda Reyes. A colombiana é uma das vozes mais ativas hoje na defesa de uma cultura leitora desde o início da vida. Autora de diversos livros, colunista do jornal “El Tiempo”, de Bogotá, e professora do curso “Escribir para niños” da Universidade Autônoma de Barcelona, Yolanda esteve no Brasil em julho para ministrar o curso “A casa imaginária: leitura e literatura na primeira infância”, promovido pela Revista Emília.
Aproveitamos sua passagem por aqui para conversar com ela sobre essas possíveis relações entre a linguagem literária e as da primeira infância. Nesta entrevista ao ArteInfância, Yolanda diz que, durante todas essas décadas de trabalho, aprende algo novo com as crianças todos os dias. E fala sobre porque devemos ler para os bebês desde cedo.
A senhora veio ao Brasil falar sobre literatura na primeira infância. O que significa ler nessa etapa da vida?
Essa pergunta é importante porque no século passado ocorreu uma mudança completa no que pensamos sobre o que é a leitura, e sobre o que é a linguagem. Quando falamos sobre ler na primeira infância falamos, sobretudo, em chegar ao mundo pelo simbólico. Um mundo cheio de significados – uns explícitos, outros não. De ambivalências, de linguagens cruzadas e coisas não ditas. E não somente de linguagem verbal. Então, falar de leitura na primeira infância é pensar em todas essas molduras simbólicas que nos dão as boas-vindas ao mundo, e às quais temos que abrir espaço para poder funcionar como seres humanos, seres que constroem significado. Isso é muito maior do que uma sessão [de leitura].
A literatura seria uma das formas de ingressar os bebês no mundo?
Sim. Um mestre para muitos de nós, Evelio Cabrejo [colombiano especialista em leitura na primeira infância] diz que nascemos do ventre da mãe, ao ventre da poesia. Ou seja, este ingresso no mundo simbólico é o que torna o nascimento humano completamente diferente do de outros animais. A linguagem é uma ferramenta para aprender, para pensar, para vincular-se com os outros, para expressar-se. [Leia a excelente entrevista concedida por Evelio Cabrejo à Revista Emília].
Por que a leitura é importante desde o início da vida?
Primeiro pelas possibilidades de vínculo afetivo e cultural. E também porque está claríssimo que nos seis primeiros anos de vida, mais especificamente nos três primeiros, e ainda mais no primeiro ano de vida, todo o desenvolvimento cerebral depende de que alguém estimule o bebê. E a linguagem é um banho de cultura e de estímulo que facilita muitos processos de aprendizado. Então, aos 6 anos, há uma grande desigualdade entre os que tiveram uma educação, no sentido de que tiveram alguém que falasse com eles, que cantasse pra eles, que os envolvesse amorosamente, que contasse histórias, e os que aprenderam a leitura na escola como uma linguagem árida, sem fundo cultural. É preciso um trabalho que começa com a poética, e que é profundamente político. Porque estamos falando de dar a todos as mesmas ferramentas para que se inventem em sua vida, se decifrem, se instalem, e se inscrevam em um mundo de cultura. E que todos possam fazê-lo da mesma maneira.
Pode nos falar um pouco sobre a Bebeteca do Espantapájaros?
Além de um espaço físico, é uma proposta para receber os bebês com suas famílias. Temos um programa que se chama “Contos de Fralda”, que acontece uma vez por semana, onde esses bebês vão acompanhados por um adulto, que eu chamo seu “corpo que canta”. Eles entram, vêem os livros, se sentam com seus pais para ler, há muitas cestas com livros, e eles vão escolhendo os livros. Depois há uma pequena hora do conto, com música. E uma atividade ou alguma experiência relacionada com a leitura. Ao final, terminamos no mesmo lugar onde começamos. As crianças vão engatinhando até as cestas e escolhem um livro para levar para casa. A Bebeteca é isso: uma biblioteca para a primeira infância, que os recebe, os acolhe, que está aberta para que os pais leiam para eles. Sempre queremos que a bebeteca seja o lugar mais lindo da casa, que os livros ocupem um lugar lindo e que tenha muitas possibilidades de movimento, de imaginação. E há outros projetos do Espantapájaros em que vamos a outras bibliotecas, ou setores onde as pessoas não podem pagar, e os ensinamos como fazer.  A Bebeteca, na verdade, não é um espaço físico. Onde haja crianças, adultos, um livro, uma cesta, um espaço, há uma bebeteca possível. Mas é preciso criar as condições.
Ou seja, poderíamos fazer aqui. A questão, imagino, seja a formação dos mediadores.
Sim, esse é o centro. O resto todo é muito fácil. Você precisa do espaço, dos livros, não precisa muito mais… mas precisa que as pessoas entendam o que fazer e o que não fazer também.
No Brasil tem crescido a produção de livros de imagens, em especial para a primeira infância. Livros feitos “para morder” ou “livros brinquedos”. Esse é o único suporte que se pode oferecer para os pequenos? Ou também se pode oferecer histórias mais complexas? Como escolher os livros para essa faixa etária?
A primeira coisa é pensar que há muitas crianças, com toda a complexidade possível, e que há uma etapa evolutiva muito grande dos 0 aos 6 anos. Primeiro os livros que cantam: tradição oral, poesia, música para aconchegar os bebês, para dá-los as boas-vindas. Digo que esses são livros sem páginas, que estão escritos nas bocas das pessoas. Depois, os pequenos livros com imagens simples, que muitas vezes não têm texto, mas que estão pensados com uma estrutura de mundo que interessa à criança, e com o mesmo ritmo das músicas de ninar. Quando você lê, vê que tem um ritmo, que alguém pensou no livro. Não se trata do tipo de papel usado, o material interno na história é mais importante. E à medida em que as crianças vão crescendo, toda a riqueza dos livros-álbuns, toda essa conversa entre os textos e as imagens, e com todos os interstícios, onde há muitas possibilidades de construção de sentido. No mundo editorial dos pequenos há uma tendência a considerar que só os livros-álbum funcionam. É uma tendência muito equivocada porque as crianças adoram a atmosfera literária que é construída na voz. A primeira infância é uma etapa de voz. As crianças são ouvintes poéticos. Necessitam escutar muito porque estão conquistando a linguagem. Sinto que às vezes os livros-álbum são muito pobres na parte verbal – não todos, claro – e as crianças necessitam de música. Eu gosto da complexidade. Me parece que as crianças vão crescendo em complexidade, que um bom leitor infantil, cultivado desde a primeira infância, é um leitor que acessa muitas possibilidades interpretativas e que não podemos subestimar os bebês.
Temos vivido uma expansão da produção de literatura infantil no mundo. Por outro lado, autores consagrados, como o brasileiro Ilan Brenman, reclamam que ainda não há reconhecimento da literatura infantil, como se ela fosse “menor”. Como a senhora vê a atual produção de literatura infantil?
Acredito que a literatura, tanto para adultos quanto para crianças, está passando por um excesso de livros publicados. Há uma tendência do mercado de produzir e vender rapidamente, e na produção infantil ainda mais. Se produzem livros para alimentar esse monstro do negócio, e as crianças são um negócio, não há dúvidas. Não há um governo que diga que ler não é bom. Isso faz com o mercado tenha uma grande quantidade de títulos. Os editores também lançam tendências, coisas que podem ser vendidas no supermercado, na escola. E no meio disso, tem muita gente pensando em como se conectar com a sua própria infância e com a infância do leitor. Nem todos são bons, nem todos duram, nem todos perseveram. Sempre há bons artistas para pequenos, como há bons escritores para adultos. E há muitos bons que não são tão reconhecidos pelo mercado. Então é necessário tentar que as crianças tenham os melhores livros nas mãos, mas não é tão fácil, nem tão simples. Porque existem muitos adultos que interferem nas compras e no que as crianças lêem. Deve-se formar o critério dos adultos.
Pesquisas mostram que no Brasil nem pais, nem professores, são leitores contumazes. É possível formar uma criança leitora sem um ambiente leitor?
A primeira resposta é a óbvia: não. Mas a segunda é sim. Porque acredito que quando formamos uma criança leitora estamos formando uma dupla  leitora. Porque acho que a leitura, em todas as gerações anteriores, esteve ligada ao poder terrível da escola e com o poder dos que sabem e os que não sabem. Então, quando uma mãe quase analfabeta lê para um bebê, ele considera que essa é a melhor leitura porque ele não quer que ela vá embora; quer que ela leia, leia, leia. A resposta que te daria é que é preciso trabalhar com essas duplas de leitores e a leitura na primeira infância dá uma segunda oportunidade aos adultos não leitores. Porque só os que estão lendo para os seus filhos estão descobrindo que há outras formas de ler que não experimentaram na infância. E isso é muito bonito.
E o trabalho do Espantapájaros inclui formação de mediadores…
Temos oficinas para adultos e um programa de estágio de duas semanas que se chama “Aprender no terreno da infância”. A pessoa entra, diz “ai, não sei” e sempre há crianças pedindo “lê um conto pra mim, por favor”. Isso fazemos de manhã. E à tarde trocamos informações sobre o que ocorreu. É um programa fascinante. Fazemos isso porque aprendemos muito. Tenho 25 anos no Espantapájaros e não há um dia em que não aprendo. Porque todos os dias as crianças te desafiam, te propõem coisas, então essa é uma fonte de inspiração. Dizemos que experimentamos concretudes humanas porque o que fazemos com as crianças é nossa matéria prima de reflexão, para pensarmos a infância, para construirmos teorias, para dar orientação de políticas públicas. Mas se as crianças não estivessem lá, não estaríamos tão inspirados e renovando-nos. Agora temos uma pesquisa chamada “os mais mordidos”, que são os livros que as crianças mais levam para casa.
(Juliana Holanda)

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