Pensador, pedagogo e desenhista, o italiano
Francesco Tonucci é uma das vozes mais ativas e influentes do mundo no
que diz respeito à participação social da infância na discussão pública
sobre o futuro das cidades.
Nascido em 1940, em Fano, pequena cidade localizada às margens do mar
Adriático, Tonucci trabalhou como professor já na década de 60, quando
pôde conhecer de perto o cotidiano escolar, experiência que deu base
para a sua concepção de educação e para a crítica ao modelo escolar
vigente. “A escola segue sendo para poucos. O primeiro desafio,
portanto, ainda é como fazer com que a escola seja para todos – e para
cada um”, aponta o italiano em entrevista exclusiva para a Plataforma Cidades Educadoras.
Sob o pseudônimo Frato, o autor publica uma série de quadrinhos em
que discute de forma irônica o cenário escolar e a estrutura familiar
contemporânea. “A escola da minha neta de nove anos é muito parecida à
minha escola de setenta anos atrás. E não podemos mais suportar isso,
considerando como o mundo mudou.”
Célebre por ter criado a iniciativa “Cidade das Crianças”, que aposta
na transformação das cidades a partir do olhar das crianças que nela
habitam, Tonucci defende que as políticas públicas urbanas têm como
tarefa garantir o direito ao brincar de meninos e meninas.
“Para todos os estudiosos da infância e do desenvolvimento infantil, a
brincadeira é a experiência mais importante na vida de um homem e de
uma mulher. Ao longo da vida, todo o cimento sobre o qual se constroem
nossa formação e nossa cultura, foi adquirido nos primeiros anos de
vida, brincando”, afirma.
Depois de consolidar estratégias para uma Cidade das Crianças em
Rosário (Argentina) e Pontevedra (Espanha), Tonucci lamenta que poucos
prefeitos sejam capazes de escutar as crianças de verdade. “Há muitos
que querem escutá-los aparentemente, como forma de publicidade, para
sair em fotos na imprensa”, critica.
Ele postula que a escuta efetiva da criança deve servir para gerar
uma mudança de paradigma, uma inversão de prioridades capaz de reverter o
planejamento masculino de cidade. “Eu não quero uma cidade infantil,
uma cidade pequena. Não quero uma cidade montessoriana. Quero uma cidade
para todos. E para estar seguro de que não esquecerei ninguém, escolho o
mais novo.”
Durante a entrevista, o educador discorre sobre temas como escola,
formação de professores, relação com as famílias, infância e cidade. O
italiano se diz impressionado com o fato de que, ao mesmo tempo em que
as crianças perderam a possibilidade de sair de casa, novas tecnologias
as conectam com o mundo inteiro. “Uma criança com enorme mobilidade
cognitiva não pode sair de casa.”
E analisa o conflito atual entre as crianças e seus pais. “As
crianças pedem, à escola e à cidade, mais autonomia e mais liberdade. E
seus pais pedem, à escola e à cidade, mais controle, mais vigilância e
mais proteção. São duas visões conflitivas e devemos escolher de que
lado estamos”, defende.
Cidades Educadoras: A sua obra está carregada de críticas ao
modelo escolar tradicional. Em sua opinião, quais foram as principais
mudanças na instituição escolar nas últimas décadas e o que ainda se
mantém, apesar dos novos contextos?
Francesco Tonucci: Acredito
que a principal mudança nos países ocidentais foi o que na Itália veio a
ocorrer na década de 60, com a ampliação da obrigatoriedade do ensino
até os 14 anos. Antes disso, havia somente a escola que eu vivi quando
era criança, uma escola para poucos. Isso porque, no final do ensino
primário, por volta dos 11 anos, tínhamos que escolher se íamos para o
ginásio, que nos prepararia para a universidade, ou se passaríamos
diretamente para o ensino profissionalizante. E esta era a solução mais
comum para a maioria dos meus companheiros – àqueles, claro, que a
escola não tinha perdido no meio do caminho. A primeira reflexão,
portanto, é analisar quem eram esses que seguiam estudando.
A maioria destes meninos e meninas
eram filhos de famílias de nível social alto, com algumas exceções, como
eu, cujos pais não pertenciam a esta classe, mas sentiam um orgulho
imenso de que seus filhos pudessem seguir estudando. Porém, grande parte
desses estudantes vinham de famílias que ofereciam livros, que tinham
adultos que liam, fosse por trabalho ou por gosto, eram famílias que
tinham o costume de ler um livro antes que seus filhos dormissem. Eram
famílias que frequentavam concertos, livrarias, que viajavam, enfim,
famílias que podiam prover isso que eu considero uma formação de base.
A escola, portanto, completava essa
formação. E, por isso, havia um certo sentido que ela oferecesse coisas
estranhas como, por exemplo, caligrafia. Eu tinha duas notas de Língua:
uma de Italiano e outra de caligrafia. E por quê? Porque uma pessoa que
saía da escola e assumia um cargo profissional, como funcionário,
deveria saber escrever bem, porque a maioria dos documentos se escreviam
a mão. Na escola se estudava ainda a História Antiga, dos gregos,
egípcios, romanos; a Geografia exótica, enfim, tudo aquilo que
completava a formação de base proveniente das famílias.
Nos anos 60, então, o parlamento
italiano amplia a obrigação escolar até os 14 anos. Nesse momento, teria
sido muito importante que a escola se perguntasse: o que devo mudar
para me tornar uma escola para todos? Entretanto, a única mudança que a
escola fez foi apagar as atividades ligadas à formação para o trabalho,
as oficinas, os ateliês, tudo aquilo relacionado às atividades manuais.
E a escola acabou oferecendo para todos aquilo que era para poucos.
Isso produziu um desastre, porque a
maioria dos alunos que estavam nessa escola não tinham uma base
cultural. E eu acredito que isso não mudou substancialmente nos dias de
hoje. A escola segue sendo para poucos. O primeiro desafio, portanto,
ainda é como fazer com que a escola seja para todos – e para cada um.
CE: E como isso pode ser feito?
A primeira coisa é o que Lóris
Malaguzzi, criador e diretor das escolas Reggio Emilia, disse em um de
seus poemas. Para ele, as crianças possuem mais de cem línguas, cem
maneiras de pensar, de sonhar e de fazer, mas lhes roubam 99. Quem rouba
as crianças não é, em minha opinião, apenas a escola. Acredito que ela
tenha muita responsabilidade nesse processo, mas que não seja a única. E
como ela faz isso?
“A criança tem
uma centena de línguas
(E cem cem cem mais)
mas eles roubam 99.
A escola e a cultura
ao separar a cabeça do corpo.
Dizem-lhe:
pensar sem as mãos
fazer sem cabeça
para ouvir e não falar
de compreender sem alegria
de amar e de maravilhar-se
só na Páscoa e no Natal.
Dizem-lhe:
para descobrir o mundo que já está lá
e do cem
eles roubam 99”
(Loris Malaguzzi, “As Cem Linguagens das Crianças”)
uma centena de línguas
(E cem cem cem mais)
mas eles roubam 99.
A escola e a cultura
ao separar a cabeça do corpo.
Dizem-lhe:
pensar sem as mãos
fazer sem cabeça
para ouvir e não falar
de compreender sem alegria
de amar e de maravilhar-se
só na Páscoa e no Natal.
Dizem-lhe:
para descobrir o mundo que já está lá
e do cem
eles roubam 99”
(Loris Malaguzzi, “As Cem Linguagens das Crianças”)
Oferecendo pouco.
A escola diz que o que lhe interessa é
saber escrever, contar, um pouco de ciência e nada mais. O resto não
interessa. E, claro, os que nasceram literários, matemáticos ou
científicos se encontram bem nessa proposta. Mas aqueles que nasceram
bailarinas, músicos, artistas, exploradores ou investigadores ficam de
fora. A escola não os reconhece e eles não reconhecem a escola.
O escritor colombiano Gabriel García
Márquez dizia que aquele que nasce escritor não o sabe previamente. E
que a educação deveria assumir como seu papel principal ajudá-lo a
descobrir o que ele chama de seu “brinquedo favorito”. Porque apenas
trabalhando sobre o que é o seu “brinquedo favorito”, ele poderá chegar
ao que chamamos de excelência, ele poderá ser capaz e ele poderá ser
feliz.
A felicidade é um tema que devemos
propor à educação. Nos anos 70, na União Soviética, Mario Lodi, grande
educador italiano e meu amigo, disse ao final de uma palestra: “A
criança não é propriedade nem da família, nem da escola e nem do Estado.
E, quando nasce, tem direito à felicidade”. Eu acredito que esse seja
um grande programa educativo: considerar que os filhos não são nossos e
que têm direito a ser feliz.
Bom, mas o que significa tudo isso? O que deveria fazer a escola para alcançar esses resultados?
Primeiro, ela deveria abrir o leque
de opções, não se contentar em oferecer pouco, mas sim oferecer muito. O
leque de linguagens deve ser grande e na escola deve ser possível
trabalhar com as mãos, fazer música, fazer uma horta, investigar, criar
poesias, inventar contos, fazer teatro. Oferecendo muitas linguagens, a
escola gera possibilidades e cada um encontra o que é seu, cada um pode
se dedicar ao seu “brinquedo favorito”. Acredito que esse seja um tema
básico para a escola.
A escola de hoje que eu conheço está
muito mais preocupada com o que falta do que com o que existe. Toda
avaliação se dedica a buscar o que falta. As lições de casa têm como
objetivo final ajudar os alunos a recuperar as lacunas. Pedimos às
crianças que dediquem sua atenção ao que não existe, ao que falta,
àquilo que eles não gostam. Ao contrário, deveríamos pedir que se
dediquem ao seu “brinquedo favorito”.
Nesses últimos cinquenta anos que eu
venho acompanhando as escolas da Itália, Espanha, Argentina – conheço
menos o Brasil -, vejo que os governos foram tentando reformar a escola.
Mudaram programas, livros, a arquitetura, mudaram os horários, enfim,
mudou tudo. A única que permaneceu igual foi a escola. A escola da minha
neta de nove anos é muito parecida à minha escola de setenta anos
atrás. E não podemos mais suportar isso, considerando como o mundo
mudou. O que aprendemos, então, é que não se muda a escola com leis. As
leis e as reformas não são capazes de mudar a realidade. E como faremos
então?
A escola de hoje que eu conheço está muito mais preocupada com o que falta do que com o que existe.
De uma maneira muito simples.
Oferecendo a todos os alunos bons professores. Então, o que todos os
Estados deveriam colocar em pauta não são mais maravilhosas reformas,
senão garantir bons professores. Uma professora de Barcelona, comentando
esse tema, me disse: o pior professor deve ser bom. Esse deve ser o
compromisso de nossas sociedades, governos e parlamentos: reformar a
formação dos professores. Os poucos países que o fizeram, como a
Finlândia, mostram que o primeiro a ser feito é aumentar o salários dos
professores. A segunda medida foi afirmar que nem todos podem ser
professores. Na Itália, funciona exatamente o contrário: vai ser
professor aquele não pôde ser algo mais. Quase sempre a decisão de se
tornar professor é resultado de um compromisso de segundo nível.
Eu, por exemplo, sou formado para ser
professor porque era um mau aluno. No Ensino Médio, eu não gostava da
escola, nunca me suspenderam, mas eu não ia bem. E, como em minha
família não havia possibilidade de que os quatro filhos fizessem
universidade, o melhor dos irmãos foi para o Liceu e eu – que não tinha
boas notas e achava a formação de professores fácil – virei professor.
A escola de formação dos professores deveria ser muito parecida àquela que nós acreditamos que as crianças deveriam viver
Aqui na Itália, eu tenho uma briga
grande com relação à ampliação da jornada, porque acredito que as
crianças já passam tempo demais dentro da escola. Na verdade, não sei
como será no Brasil, mas aqui os meninos e meninas quase não saem de
casa, passam a tarde em escolas de tempo integral, fazendo música,
esporte, etc., e chegam em casa com as lições de casa que a escola passa
todos os dias – incluindo fins de semana, feriados e férias. Isso é um
abuso da escola, porque a Convenção dos Direitos das Crianças diz
claramente que elas têm dois direitos, expressos no artigo 28 – o
direito à educação formal; e no artigo 31 – direito ao descanso, ao
tempo livre e ao livre brincar. Para todos os estudiosos da infância, e
do desenvolvimento infantil, a brincadeira é a experiência mais
importante na vida de um homem e de uma mulher. Ao longo da vida, todo o
cimento sobre o qual se constroem nossa formação e nossa cultura, foi
adquirido nos primeiros anos de vida brincando. Além disso, brincar é a
experiência que mais se parece à investigação científica e à experiência
artística.
Nesse sentido, acredito que a escola
deva ocupar a manhã e respeitar a tarde. Os deveres não contribuem em
nada com a formação das crianças, atrapalham muito e impedem o brincar.
Ao contrário, a escola deveria ser uma das mais interessadas no livre
brincar das crianças, porque é assim que elas vivem experiências e
emoções que amanhã poderão ser aportes à vida escolar. As boas escolas
que eu conheci não enfocavam nos programas ministeriais ou nos livros,
mas sim na experiência de vida dos alunos.
CE: Sobre a formação de professores, ainda há muitos desafios,
considerando que nosso processo histórico nos afastou daquela que parece
ser a principal função de uma escola. Por outro lado, não me parece que
o senhor esteja falando de um professor fora do alcance, uma figura
longínqua. Diante dessa nova/velha realidade, qual seria então o papel
de um professor?
Tonucci: O que temos que
esquecer é que o papel de um professor seja ensinar. Ensinar significa
transmitir parte de uma cultura dos que sabem aos que não sabem. Essa
ideia gira em torno de uma ideia muito antiga de que há um vaso vazio
que precisa ser preenchido. Essa hipótese é equivocada: as crianças são
completas desde que nascem e possuem tudo aquilo que necessitam para
viver. A questão é que cada um está cheio de competências, desejos e
habilidades diferentes do outro.
Então, um bom professor é aquele que
escuta e passa a palavra para as crianças porque precisa conhecer o que
eles sabem. Um bom professor é aquele que favorece o trabalho entre os
alunos, porque sabe que as crianças são construtoras de conhecimento,
não são passivas ou apenas receptoras de conhecimento. Mas isso só será possível se a formação desse professor considerar esses elementos.
O equívoco fundamental é que, a
despeito de todas as reformas educacionais, os professores saem das
universidades tendo feito anotações e avaliações nas quais devem repetir
o que foi dito por seus professores. E está claro que, embora os
conteúdos sejam modernos, isso não é suficiente para prover uma formação
em conexão com os dias de hoje.
Dentro de uns anos, esse professor se
encontrará em frente a uma sala de aula de 30 ou 40 crianças, pensando:
o que faço agora? E retomará os últimos quatro, cinco anos de sua
formação, sem encontrar nada que lhe seja útil para este tempo
histórico. E o que fará, então? Retomará o que seus professores fizeram
quando tinha cinco ou seis anos e estava na escola. Essa é uma das
explicações do porque a escola não muda. O único modelo que funciona é
aquele que os professores viveram quando eram crianças. Essa é a melhor
garantia de conservação já criada na história.
A escola de formação dos professores
deveria ser, portanto, muito parecida àquela que nós acreditamos que as
crianças deveriam viver, com muitas linguagens, muita investigação
científica, muita criatividade, com a possibilidade de viver
experiências distintas, com trabalhos em grupo e, sobretudo, com
autoria.
CE: No contexto brasileiro, em que as mães estão trabalhando o dia
inteiro, sobretudo as mulheres das classes mais pobres, a escola de
tempo integral emerge como uma solução para essa equação de difícil
equilíbrio. Gostaria de saber como a sua proposta de que as crianças
tenham as tardes livres se relaciona com esses desafios contemporâneos
da vida das famílias.
Tonucci: Creio que aqui se
abre um tema mais complexo que é o tema da cidade. Algumas relações
fundamentais, que antes estavam garantidas, se quebraram. Uma delas é a
relação entre as famílias e a escola. Não sei como será no Brasil, mas
na maioria dos casos não há mais uma relação de solidariedade e
participação entre famílias e escola. A família está sempre em uma
atitude conflituosa e está sempre denunciando o que ocorre na escola, o
que deixa os professores muito preocupados. Há denúncias na Itália sobre
avaliação negativa que professores deram a um estudante. Nunca conheci
um bom professor que teve problemas com as famílias, porque ele sabe que
uma de suas responsabilidades é ter uma boa relação com as famílias.
A outra relação que mudou é com a
cidade. Antes, a cidade era o lugar das crianças. Eu me lembro que minha
mãe nos enxotava de casa. Sendo de uma família humilde, ela não podia
estar com as crianças dentro de casa, pois era impossível dar conta de
todas as tarefas com meus irmãos e eu lá dentro. Portanto, dentro de um
marco de regras claras de tempo, espaço, atitudes e de comportamento,
nós saíamos de casa. Falo dessas regras porque não proponho a anarquia,
proponho a autonomia. E a autonomia não é fruto do abandono, ela é
resultado do amor e da confiança. Eu te deixo porque confio em você.
Autonomia não é fruto do abandono, ela é resultado do amor e da confiança
Isso tudo mudou completamente e hoje
as famílias culpam a cidade. Dizem: “A cidade não permite a autonomia
das crianças”. Eu acredito que muitas dessas razões, desses medos, não
são verdadeiros ou não correspondem à realidade. E esse medo é “ajudado”
muito pela política e pelos meios de comunicação, digo, a televisão
dedica grande parte de seu tempo em descrever e comentar o que há de
pior na sociedade. É claro que isso torna esses atos muito mais
presentes, dolorosos e mais frequentes do que realmente são. Não temos
dados de que as violências aumentam, mas sim que aumentam a visibilidade
que têm. Outro dado é que a violência contra as crianças e mulheres não
ocorre nas ruas, não é perpetrada por desconhecidos, mas em sua própria
família ou por pessoas conhecidas e, quase sempre, queridas. Isso faz
dessas violências ainda mais inaceitáveis, porque se aproveitam do afeto
e do amor para chegar a esse resultado. Então, não me parece que seja a
cidade o problema. Hoje podemos dizer, paradoxalmente, que os dois
lugares mais inseguros para as crianças são sua casa e o carro de seus
pais. Os acidentes mais frequentes são ou domésticos ou de carro. O
melhor que podemos querer para as crianças é que saiam de casa.
Veja, repito, acredito que esse seja
uma das mudanças mais profundas dos dias de hoje, a que diz respeito à
queda da autonomia das crianças. Quando eu era criança, a autonomia de
movimento que meu pai e eu tínhamos era quase igual. Nós dois tínhamos a
bicicleta como meio de transporte e íamos circulando pela rua. A ideia
de viajar não existia. Agora eu cruzo o oceano com facilidade e minha
neta nem sai de casa. Ou seja, nossas experiências de mobilidade são
muito diferentes. O que mais me impressiona é que as crianças perderam a
possibilidade de sair de casa, enquanto as novas tecnologias lhes
permitiram se conectar com o mundo e acessar informações que na minha
infância eram impensáveis de se conseguir. Uma criança com enorme
mobilidade cognitiva não pode sair de casa. Tenho medo que, dentro de
pouco, os adultos digam que não vale à pena sair de casa porque temos
esse meio que eu e você estamos utilizando para realizar essa conversa.
Há momentos da vida que é preciso o toque, a briga, o contato.
CE: Quando se fala sobre o direito à cidade, nem sempre as
crianças são nomeadas. Será que, ao não nomeá-las, corremos o risco de
esquecê-las quando pensamos e projetamos o espaço urbano?
Tonucci: Sim. Isso significa
ocupar-se de todos e não de um alguém. Essa foi a escolha ao dedicar o
meu trabalho às crianças. Eu não quero uma cidade infantil, uma cidade
pequena. Não quero uma cidade montessoriana. Quero uma cidade para
todos. E para estar seguro de que não esquecerei ninguém, escolho o mais
novo. Essa é a motivação cultural da Cidade das Crianças que,
traduzidas em decisões administrativas, se trata de mudar três
prioridades.
A primeira é passar dos adultos para
as crianças. Os adultos e, sobretudo, os homens, tivemos a capacidade de
reconstruir o que estava destruído no pós-guerra. Mas o fizemos para
nós mesmos: adultos e homens. Essa cidade se desenvolveu assumindo as
necessidades do adulto como sendo as necessidades da cidade. E, claro, o
adulto levava consigo seu “brinquedo favorito”, que eram os carros. E
as cidades assumiram características que o carro necessitava. Em relação
ao desenho das ruas, foram diminuindo as calçadas e aumentando as ruas,
para que os carros passassem.
A segunda é alterar a prioridade
entre carros e pedestres. E isso tem um sentido profundo, porque não é
apenas uma decisão psicológica, é uma decisão democrática, porque todos
somos pedestres. Só depois de ser pedestre é que alguns escolhem o meio
privado ou público, mas antes de tudo, somos pedestres. Portanto,
inverter essa prioridade significa tornar as cidades mais democráticas.
Isso implica redesenhar as ruas para que sejam, primeiro, à medida dos
pedestres e, depois, das bicicletas, depois dos meios de transporte
públicos e só depois dos meios privados. Quando cruzamos uma rua, temos
que descer uma calçada, entrar na via e subir uma outra calçada. Ou
seja, abandonamos nosso território de segurança e passamos por um
caminho que não é nosso e é perigoso. Deveria ser o contrário: a calçada
deveria entrar na via na mesma altura, de modo que, se eu estou com um
carrinho de bebê, em cadeira de rodas, ou se levo compras, não preciso
realizar esse movimento incômodo de descer e subir que fazemos hoje. O
caminho dos pedestres deveria ser sempre o mesmo e os carros, que
possuem motor, é que deveriam subir e descer, porque foram feitos para
isso.
Algumas cidades no mundo estão
assumindo essa proposta da Cidade das Crianças. Uma delas é Pontevedra,
no norte da Espanha, na Galícia. O prefeito de Pontevedra disse que
escutou uma palestra minha e que eu o convenci, justamente com esse
argumento das prioridades. Então, seus assessores começaram a analisar
as ruas dessa cidade que possui 80 mil habitantes e viram que a rua
tinha, ao todo, nove metros de largura, sendo seis metros para os carros
(ida e volta), mais o estacionamento, sobrando três metros para as
calçadas que, divididas em dois lados, terminavam com 1,5m cada.
Considerando o mobiliário urbano, os pedestres tinham cerca de um metro
apenas para caminhar, o que os obrigava a andar em fila única. Então
disseram: “Bom, façamos o que diz esse senhor, invertamos as
prioridades!”. Como chove muito na Galícia, tomaram como base para
definir o espaço dos pedestres que fosse possível passar duas pessoas
com o guarda-chuva aberto. Esse foi o plano urbanístico da cidade.
Somando o mobiliário urbano, chegamos à três metros de cada lado,
totalizando seis metros para os pedestres. Lamentavelmente, sobraram
apenas três metros para os carros. Sinalizaram todas as ruas e
diminuíram drasticamente o espaço para os carros. Viram que, estreitando
as ruas, a velocidade dos carros diminuía. Há estudos que mostram que,
se a calçada tem menos de três metros, os carros não sobem mais de 30
km. Então, definiram que a velocidade da cidade inteira seria 30 km/h.
O prefeito da cidade, que é médico,
me dizia que a 50 km/h morre um pedestre a cada dois. E a 30 km/h morre
um a cada vinte. Essa me parece uma diferença importante. Com essas
mudanças, eles reduziram em 60% a emissão de CO2. E são alguns anos sem
mortos em acidentes de trânsito. Na itália, os acidentes de trânsito são
a primeira causa de morte até os 26 anos. E os custos oriundos desses
acidentes é de 2,5% do PIB. Isso indica que realizar essas mudanças
implica economizar muito dinheiro e salvar muitas vidas.
A terceira é inverter a prioridade
entre bairro e cidade. Claro que falar de Pontevedra a uma pessoa que
vive em São Paulo pode ser ridículo, mas não é, porque São Paulo pode
ser a soma de muitas Pontevedras, depende de como você olha para a
cidade. Você pode projetar e olhar de cima, desenhando muitas linhas,
traçando caminhos até onde você está, ou o contrário, definindo as
regras que devem valer dentro de um bairro, já que todos vivemos em um
bairro. Por isso, é importante garantir um elevado grau satisfatório –
da felicidade que falávamos antes – dentro dos bairros. Temos que pensar
que nos bairros deveria ser possível viver bem, mover-se com
tranquilidade, que todos pudessem viver de forma autônoma, os idosos
para comprar seu jornal, as crianças para ir à escola. Uma vez definidas
as regras dos bairros, haveria que aplicá-las à cidade. Isso significa,
por exemplo, que uma estrada não passaria dentro do bairro, como
acontece em várias cidades italianas. Ela deveria contorná-lo. “Mas
então não será reta?”, perguntarão. “Não”. “Mas se não for reta, será
menos veloz?”. “Sim, será menos veloz”.
CE: Como fazer com essas prioridades sejam invertidas e assumidas
por quem detém o poder da decisão nas cidades, considerando a
diversidade de interesses que a compõe?
Tonucci: Nossa proposta é uma
proposta política e a colocamos nas mãos dos prefeitos. São poucos os
prefeitos capazes de escutar as crianças de verdade. Há muitos que
querem escutá-los aparentemente, como forma de publicidade, para sair em
fotos na imprensa. Nós renunciamos a todos esses dispositivos. As
crianças que participam do Conselho das Crianças são escolhidas a partir
de sorteio. Ou seja, não são os pequenos políticos profissionais da
escola. Te digo isso porque acredito que a resposta para o que você
pergunta só pode ser a participação. O interessante de incluir as
crianças é que eles não têm interesses como nós, ou seja, interesse de
dinheiro, de poder. Tudo isso está bastante fora do mundo infantil.
Trabalhamos com crianças bem pequenas, que expressam de forma muito
simples suas necessidades mais fundamentais. Nesse diálogo, acredito que
um bom administrador pode encontrar força para colocar-se ao lado de
todos os cidadãos, sem perder ninguém. É uma escolha de valor, porque as
crianças levam consigo um conflito. E a cada proposta que fazem, abrem
um conflito com os adultos.
Hoje vivemos um conflito novo entre
as crianças e seus pais, porque as crianças pedem à escola e à cidade,
mais autonomia e mais liberdade. E seus pais pedem à escola e à cidade,
mais controle, mais vigilância e mais proteção. São duas visões
conflitivas e devemos escolher de que lado estamos. Temos que saber que,
se estamos com os pais, estamos contra os filhos, porque se aumenta o
controle, diminui a autonomia. Mas se estamos com os filhos, não estamos
contra os pais, porque quanto mais as crianças tiverem autonomia, mais
autonomia terão seus pais. E isso eu aprendi observando e refletindo
sobre as batalhas de vocês, mulheres. Tudo o que vocês conquistaram
melhorou o mundo. E eu acredito que isso vale para as crianças também:
tudo o que fazemos para que seja melhor a vida das crianças, faz com que
seja melhor a vida para nós e para a cidade, como um todo.
Não é fácil encontrar prefeitos que
se coloquem ao lado das crianças, porque isso os coloca em conflito com
seus eleitores, que são os pais. Por isso falo com muito orgulho dessa
experiências de Pontevedra, porque o prefeito praticamente retirou os
carros da cidade, mas segue sendo eleito por sua população.
CE: Essas medidas parecem impor à gestão pública um trabalho intersetorial. O senhor poderia falar sobre isso?
Tonucci: Colocamos essa
proposta na mão do prefeito porque sabemos que é transversal, ou seja,
não deve estar dentro de uma secretaria apenas. Deve envolver a cidade
como um todo, de forma intersetorial. É uma proposta para
administradores inquietos, para administradores que veem que o que está
ocorrendo está mal, que o que fizemos até hoje não resolveu nossos
principais problemas. Creio que a Victória, uma menina de Rosário
(Argentina), que participa do Conselho das Crianças, resume bem: “Tudo o
que está ocorrendo é culpa dos adultos. É preciso limitar o poder dos
adultos”.
Esse me parece um diagnóstico claro
de como vão as coisas. E acredito que isso se relaciona com o que você
falou sobre os interesses que compõem a cidade, sobre quem tem poder na
cidade. É preciso reduzir o poder dos que têm poder. E as participações
são a forma democrática de reduzir esse poder. Essa é uma proposta
complexa porque significa renunciar à parte desse poder.
Fonte: http://cidadeseducadoras.org.br/reportagens/francesco-tonucci-a-crianca-como-paradigma-de-uma-cidade-para-todos/
Publicado dia 21/09/2016
Publicado dia 21/09/2016
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