Pensador, pedagogo e desenhista, o italiano 
Francesco Tonucci é uma das vozes mais ativas e influentes do mundo no 
que diz respeito à participação social da infância na discussão pública 
sobre o futuro das cidades.
Nascido em 1940, em Fano, pequena cidade localizada às margens do mar
 Adriático, Tonucci trabalhou como professor já na década de 60, quando 
pôde conhecer de perto o cotidiano escolar, experiência que deu base 
para a sua concepção de educação e para a crítica ao modelo escolar 
vigente. “A escola segue sendo para poucos. O primeiro desafio, 
portanto, ainda é como fazer com que a escola seja para todos – e para 
cada um”, aponta o italiano em entrevista exclusiva para a Plataforma Cidades Educadoras.
Sob o pseudônimo Frato, o autor publica uma série de quadrinhos em 
que discute de forma irônica o cenário escolar e a estrutura familiar 
contemporânea. “A escola da minha neta de nove anos é muito parecida à 
minha escola de setenta anos atrás. E não podemos mais suportar isso, 
considerando como o mundo mudou.”
Célebre por ter criado a iniciativa “Cidade das Crianças”, que aposta
 na transformação das cidades a partir do olhar das crianças que nela 
habitam, Tonucci defende que as políticas públicas urbanas têm como 
tarefa garantir o direito ao brincar de meninos e meninas.
“Para todos os estudiosos da infância e do desenvolvimento infantil, a
 brincadeira é a experiência mais importante na vida de um homem e de 
uma mulher. Ao longo da vida, todo o cimento sobre o qual se constroem 
nossa formação e nossa cultura, foi adquirido nos primeiros anos de 
vida, brincando”, afirma.
Depois de consolidar estratégias para uma Cidade das Crianças em 
Rosário (Argentina) e Pontevedra (Espanha), Tonucci lamenta que poucos 
prefeitos sejam capazes de escutar as crianças de verdade. “Há muitos 
que querem escutá-los aparentemente, como forma de publicidade, para 
sair em fotos na imprensa”, critica.
Ele postula que a escuta efetiva da criança deve servir para gerar 
uma mudança de paradigma, uma inversão de prioridades capaz de reverter o
 planejamento masculino de cidade. “Eu não quero uma cidade infantil, 
uma cidade pequena. Não quero uma cidade montessoriana. Quero uma cidade
 para todos. E para estar seguro de que não esquecerei ninguém, escolho o
 mais novo.”
Durante a entrevista, o educador discorre sobre temas como escola, 
formação de professores, relação com as famílias, infância e cidade. O 
italiano se diz impressionado com o fato de que, ao mesmo tempo em que 
as crianças perderam a possibilidade de sair de casa, novas tecnologias 
as conectam com o mundo inteiro. “Uma criança com enorme mobilidade 
cognitiva não pode sair de casa.”
E analisa o conflito atual entre as crianças e seus pais. “As 
crianças pedem, à escola e à cidade, mais autonomia e mais liberdade. E 
seus pais pedem, à escola e à cidade, mais controle, mais vigilância e 
mais proteção. São duas visões conflitivas e devemos escolher de que 
lado estamos”, defende.
Cidades Educadoras: A sua obra está carregada de críticas ao 
modelo escolar tradicional. Em sua opinião, quais foram as principais 
mudanças na instituição escolar nas últimas décadas e o que ainda se 
mantém, apesar dos novos contextos?
Francesco Tonucci: Acredito 
que a principal mudança nos países ocidentais foi o que na Itália veio a
 ocorrer na década de 60, com a ampliação da obrigatoriedade do ensino 
até os 14 anos. Antes disso, havia somente a escola que eu vivi quando 
era criança, uma escola para poucos. Isso porque, no final do ensino 
primário, por volta dos 11 anos, tínhamos que escolher se íamos para o 
ginásio, que nos prepararia para a universidade, ou se passaríamos 
diretamente para o ensino profissionalizante. E esta era a solução mais 
comum para a maioria dos meus companheiros – àqueles, claro, que a 
escola não tinha perdido no meio do caminho. A primeira reflexão, 
portanto, é analisar quem eram esses que seguiam estudando.
Tonucci criou o personagem “Frato” para ironizar as instituições escolares.
Crédito: TONUCCI, Francesco. Com olhos de criança. Porto Alegre, RS: Artmed, 1997.
A maioria destes meninos e meninas 
eram filhos de famílias de nível social alto, com algumas exceções, como
 eu, cujos pais não pertenciam a esta classe, mas sentiam um orgulho 
imenso de que seus filhos pudessem seguir estudando. Porém, grande parte
 desses estudantes vinham de famílias que ofereciam livros, que tinham 
adultos que liam, fosse por trabalho ou por gosto, eram famílias que 
tinham o costume de ler um livro antes que seus filhos dormissem. Eram 
famílias que frequentavam concertos, livrarias, que viajavam, enfim, 
famílias que podiam prover isso que eu considero uma formação de base. 
A escola, portanto, completava essa 
formação. E, por isso, havia um certo sentido que ela oferecesse coisas 
estranhas como, por exemplo, caligrafia. Eu tinha duas notas de Língua: 
uma de Italiano e outra de caligrafia. E por quê? Porque uma pessoa que 
saía da escola e assumia um cargo profissional, como funcionário, 
deveria saber escrever bem, porque a maioria dos documentos se escreviam
 a mão. Na escola se estudava ainda a História Antiga, dos gregos, 
egípcios, romanos; a Geografia exótica, enfim, tudo aquilo que 
completava a formação de base proveniente das famílias.
Nos anos 60, então, o parlamento 
italiano amplia a obrigação escolar até os 14 anos. Nesse momento, teria
 sido muito importante que a escola se perguntasse: o que devo mudar 
para me tornar uma escola para todos? Entretanto, a única mudança que a 
escola fez foi apagar as atividades ligadas à formação para o trabalho, 
as oficinas, os ateliês, tudo aquilo relacionado às atividades manuais. 
E a escola acabou oferecendo para todos aquilo que era para poucos.
Isso produziu um desastre, porque a 
maioria dos alunos que estavam nessa escola não tinham uma base 
cultural. E eu acredito que isso não mudou substancialmente nos dias de 
hoje. A escola segue sendo para poucos. O primeiro desafio, portanto, 
ainda é como fazer com que a escola seja para todos – e para cada um.
CE: E como isso pode ser feito?
A primeira coisa é o que Lóris 
Malaguzzi, criador e diretor das escolas Reggio Emilia, disse em um de 
seus poemas. Para ele, as crianças possuem mais de cem línguas, cem 
maneiras de pensar, de sonhar e de fazer, mas lhes roubam 99. Quem rouba
 as crianças não é, em minha opinião, apenas a escola. Acredito que ela 
tenha muita responsabilidade nesse processo, mas que não seja a única. E
 como ela faz isso?
“A criança tem
uma centena de línguas
(E cem cem cem mais)
mas eles roubam 99.
A escola e a cultura
ao separar a cabeça do corpo.
Dizem-lhe:
pensar sem as mãos
fazer sem cabeça
para ouvir e não falar
de compreender sem alegria
de amar e de maravilhar-se
só na Páscoa e no Natal.
Dizem-lhe:
para descobrir o mundo que já está lá
e do cem
eles roubam 99”
(Loris Malaguzzi, “As Cem Linguagens das Crianças”)
uma centena de línguas
(E cem cem cem mais)
mas eles roubam 99.
A escola e a cultura
ao separar a cabeça do corpo.
Dizem-lhe:
pensar sem as mãos
fazer sem cabeça
para ouvir e não falar
de compreender sem alegria
de amar e de maravilhar-se
só na Páscoa e no Natal.
Dizem-lhe:
para descobrir o mundo que já está lá
e do cem
eles roubam 99”
(Loris Malaguzzi, “As Cem Linguagens das Crianças”)
Oferecendo pouco.
A escola diz que o que lhe interessa é
 saber escrever, contar, um pouco de ciência e nada mais. O resto não 
interessa. E, claro, os que nasceram literários, matemáticos ou 
científicos se encontram bem nessa proposta. Mas aqueles que nasceram 
bailarinas, músicos, artistas, exploradores ou investigadores ficam de 
fora. A escola não os reconhece e eles não reconhecem a escola. 
O escritor colombiano Gabriel García 
Márquez dizia que aquele que nasce escritor não o sabe previamente. E 
que a educação deveria assumir como seu papel principal ajudá-lo a 
descobrir o que ele chama de seu “brinquedo favorito”. Porque apenas 
trabalhando sobre o que é o seu “brinquedo favorito”, ele poderá chegar 
ao que chamamos de excelência, ele poderá ser capaz e ele poderá ser 
feliz.
A felicidade é um tema que devemos 
propor à educação. Nos anos 70, na União Soviética, Mario Lodi, grande 
educador italiano e meu amigo, disse ao final de uma palestra: “A 
criança não é propriedade nem da família, nem da escola e nem do Estado.
 E, quando nasce, tem direito à felicidade”. Eu acredito que esse seja 
um grande programa educativo: considerar que os filhos não são nossos e 
que têm direito a ser feliz.
Bom, mas o que significa tudo isso? O que deveria fazer a escola para alcançar esses resultados? 
Primeiro, ela deveria abrir o leque 
de opções, não se contentar em oferecer pouco, mas sim oferecer muito. O
 leque de linguagens deve ser grande e na escola deve ser possível 
trabalhar com as mãos, fazer música, fazer uma horta, investigar, criar 
poesias, inventar contos, fazer teatro. Oferecendo muitas linguagens, a 
escola gera possibilidades e cada um encontra o que é seu, cada um pode 
se dedicar ao seu “brinquedo favorito”. Acredito que esse seja um tema 
básico para a escola.
A escola de hoje que eu conheço está 
muito mais preocupada com o que falta do que com o que existe. Toda 
avaliação se dedica a buscar o que falta. As lições de casa têm como 
objetivo final ajudar os alunos a recuperar as lacunas. Pedimos às 
crianças que dediquem sua atenção ao que não existe, ao que falta, 
àquilo que eles não gostam. Ao contrário, deveríamos pedir que se 
dediquem ao seu “brinquedo favorito”.
Nesses últimos cinquenta anos que eu 
venho acompanhando as escolas da Itália, Espanha, Argentina – conheço 
menos o Brasil -, vejo que os governos foram tentando reformar a escola.
 Mudaram programas, livros, a arquitetura, mudaram os horários, enfim, 
mudou tudo. A única que permaneceu igual foi a escola. A escola da minha
 neta de nove anos é muito parecida à minha escola de setenta anos 
atrás. E não podemos mais suportar isso, considerando como o mundo 
mudou. O que aprendemos, então, é que não se muda a escola com leis. As 
leis e as reformas não são capazes de mudar a realidade. E como faremos 
então?
A escola de hoje que eu conheço está muito mais preocupada com o que falta do que com o que existe.
De uma maneira muito simples. 
Oferecendo a todos os alunos bons professores. Então, o que todos os 
Estados deveriam colocar em pauta não são mais maravilhosas reformas, 
senão garantir bons professores. Uma professora de Barcelona, comentando
 esse tema, me disse: o pior professor deve ser bom. Esse deve ser o 
compromisso de nossas sociedades, governos e parlamentos: reformar a 
formação dos professores. Os poucos países que o fizeram, como a 
Finlândia, mostram que o primeiro a ser feito é aumentar o salários dos 
professores. A segunda medida foi afirmar que nem todos podem ser 
professores. Na Itália, funciona exatamente o contrário: vai ser 
professor aquele não pôde ser algo mais. Quase sempre a decisão de se 
tornar professor é resultado de um compromisso de segundo nível. 
Eu, por exemplo, sou formado para ser
 professor porque era um mau aluno. No Ensino Médio, eu não gostava da 
escola, nunca me suspenderam, mas eu não ia bem. E, como em minha 
família não havia possibilidade de que os quatro filhos fizessem 
universidade, o melhor dos irmãos foi para o Liceu e eu – que não tinha 
boas notas e achava a formação de professores fácil – virei professor.
A escola de formação dos professores deveria ser muito parecida àquela que nós acreditamos que as crianças deveriam viver
Aqui na Itália, eu tenho uma briga 
grande com relação à ampliação da jornada, porque acredito que as 
crianças já passam tempo demais dentro da escola. Na verdade, não sei 
como será no Brasil, mas aqui os meninos e meninas quase não saem de 
casa, passam a tarde em escolas de tempo integral, fazendo música, 
esporte, etc., e chegam em casa com as lições de casa que a escola passa
 todos os dias – incluindo fins de semana, feriados e férias. Isso é um 
abuso da escola, porque a Convenção dos Direitos das Crianças diz 
claramente que elas têm dois direitos, expressos no artigo 28 – o 
direito à educação formal; e no artigo 31 – direito ao descanso, ao 
tempo livre e ao livre brincar. Para todos os estudiosos da infância, e 
do desenvolvimento infantil, a brincadeira é a experiência mais 
importante na vida de um homem e de uma mulher. Ao longo da vida, todo o
 cimento sobre o qual se constroem nossa formação e nossa cultura, foi 
adquirido nos primeiros anos de vida brincando. Além disso, brincar é a 
experiência que mais se parece à investigação científica e à experiência
 artística.
Nesse sentido, acredito que a escola 
deva ocupar a manhã e respeitar a tarde. Os deveres não contribuem em 
nada com a formação das crianças, atrapalham muito e impedem o brincar. 
Ao contrário, a escola deveria ser uma das mais interessadas no livre 
brincar das crianças, porque é assim que elas vivem experiências e 
emoções que amanhã poderão ser aportes à vida escolar. As boas escolas 
que eu conheci não enfocavam nos programas ministeriais ou nos livros, 
mas sim na experiência de vida dos alunos. 
CE: Sobre a formação de professores, ainda há muitos desafios, 
considerando que nosso processo histórico nos afastou daquela que parece
 ser a principal função de uma escola. Por outro lado, não me parece que
 o senhor esteja falando de um professor fora do alcance, uma figura 
longínqua. Diante dessa nova/velha realidade, qual seria então o papel 
de um professor?  
“Temos que esquecer é que o papel de um professor seja ensinar”
Crédito: Fernando Moital
Tonucci: O que temos que 
esquecer é que o papel de um professor seja ensinar. Ensinar significa 
transmitir parte de uma cultura dos que sabem aos que não sabem. Essa 
ideia gira em torno de uma ideia muito antiga de que há um vaso vazio 
que precisa ser preenchido. Essa hipótese é equivocada: as crianças são 
completas desde que nascem e possuem tudo aquilo que necessitam para 
viver. A questão é que cada um está cheio de competências, desejos e 
habilidades diferentes do outro. 
Então, um bom professor é aquele que 
escuta e passa a palavra para as crianças porque precisa conhecer o que 
eles sabem. Um bom professor é aquele que favorece o trabalho entre os 
alunos, porque sabe que as crianças são construtoras de conhecimento, 
não são passivas ou apenas receptoras de conhecimento. Mas isso só será possível se a formação desse professor considerar esses elementos. 
O equívoco fundamental é que, a 
despeito de todas as reformas educacionais, os professores saem das 
universidades tendo feito anotações e avaliações nas quais devem repetir
 o que foi dito por seus professores. E está claro que, embora os 
conteúdos sejam modernos, isso não é suficiente para prover uma formação
 em conexão com os dias de hoje. 
Dentro de uns anos, esse professor se
 encontrará em frente a uma sala de aula de 30 ou 40 crianças, pensando:
 o que faço agora? E retomará os últimos quatro, cinco anos de sua 
formação, sem encontrar nada que lhe seja útil para este tempo 
histórico. E o que fará, então? Retomará o que seus professores fizeram 
quando tinha cinco ou seis anos e estava na escola. Essa é uma das 
explicações do porque a escola não muda. O único modelo que funciona é 
aquele que os professores viveram quando eram crianças. Essa é a melhor 
garantia de conservação já criada na história. 
A escola de formação dos professores 
deveria ser, portanto, muito parecida àquela que nós acreditamos que as 
crianças deveriam viver, com muitas linguagens, muita investigação 
científica, muita criatividade, com a possibilidade de viver 
experiências distintas, com trabalhos em grupo e, sobretudo, com 
autoria.  
CE: No contexto brasileiro, em que as mães estão trabalhando o dia
 inteiro, sobretudo as mulheres das classes mais pobres, a escola de 
tempo integral emerge como uma solução para essa equação de difícil 
equilíbrio. Gostaria de saber como a sua proposta de que as crianças 
tenham as tardes livres se relaciona com esses desafios contemporâneos 
da vida das famílias.
Tonucci: Creio que aqui se 
abre um tema mais complexo que é o tema da cidade. Algumas relações 
fundamentais, que antes estavam garantidas, se quebraram. Uma delas é a 
relação entre as famílias e a escola. Não sei como será no Brasil, mas 
na maioria dos casos não há mais uma relação de solidariedade e 
participação entre famílias e escola. A família está sempre em uma 
atitude conflituosa e está sempre denunciando o que ocorre na escola, o 
que deixa os professores muito preocupados. Há denúncias na Itália sobre
 avaliação negativa que professores deram a um estudante. Nunca conheci 
um bom professor que teve problemas com as famílias, porque ele sabe que
 uma de suas responsabilidades é ter uma boa relação com as famílias.
A outra relação que mudou é com a 
cidade. Antes, a cidade era o lugar das crianças. Eu me lembro que minha
 mãe nos enxotava de casa. Sendo de uma família humilde, ela não podia 
estar com as crianças dentro de casa, pois era impossível dar conta de 
todas as tarefas com meus irmãos e eu lá dentro. Portanto, dentro de um 
marco de regras claras de tempo, espaço, atitudes e de comportamento, 
nós saíamos de casa. Falo dessas regras porque não proponho a anarquia, 
proponho a autonomia. E a autonomia não é fruto do abandono, ela é 
resultado do amor e da confiança. Eu te deixo porque confio em você.
Autonomia não é fruto do abandono, ela é resultado do amor e da confiança
Isso tudo mudou completamente e hoje 
as famílias culpam a cidade. Dizem: “A cidade não permite a autonomia 
das crianças”. Eu acredito que muitas dessas razões, desses medos, não 
são verdadeiros ou não correspondem à realidade. E esse medo é “ajudado”
 muito pela política e pelos meios de comunicação, digo, a televisão 
dedica grande parte de seu tempo em descrever e comentar o que há de 
pior na sociedade. É claro que isso torna esses atos muito mais 
presentes, dolorosos e mais frequentes do que realmente são. Não temos 
dados de que as violências aumentam, mas sim que aumentam a visibilidade
 que têm. Outro dado é que a violência contra as crianças e mulheres não
 ocorre nas ruas, não é perpetrada por desconhecidos, mas em sua própria
 família ou por pessoas conhecidas e, quase sempre, queridas. Isso faz 
dessas violências ainda mais inaceitáveis, porque se aproveitam do afeto
 e do amor para chegar a esse resultado. Então, não me parece que seja a
 cidade o problema. Hoje podemos dizer, paradoxalmente, que os dois 
lugares mais inseguros para as crianças são sua casa e o carro de seus 
pais. Os acidentes mais frequentes são ou domésticos ou de carro. O 
melhor que podemos querer para as crianças é que saiam de casa.
Veja, repito, acredito que esse seja 
uma das mudanças mais profundas dos dias de hoje, a que diz respeito à 
queda da autonomia das crianças. Quando eu era criança, a autonomia de 
movimento que meu pai e eu tínhamos era quase igual. Nós dois tínhamos a
 bicicleta como meio de transporte e íamos circulando pela rua. A ideia 
de viajar não existia. Agora eu cruzo o oceano com facilidade e minha 
neta nem sai de casa. Ou seja, nossas experiências de mobilidade são 
muito diferentes. O que mais me impressiona é que as crianças perderam a
 possibilidade de sair de casa, enquanto as novas tecnologias lhes 
permitiram se conectar com o mundo e acessar informações que na minha 
infância eram impensáveis de se conseguir. Uma criança com enorme 
mobilidade cognitiva não pode sair de casa. Tenho medo que, dentro de 
pouco, os adultos digam que não vale à pena sair de casa porque temos 
esse meio que eu e você estamos utilizando para realizar essa conversa. 
Há momentos da vida que é preciso o toque, a briga, o contato.
“O
 que mais me impressiona é que as crianças perderam a possibilidade de 
sair de casa, enquanto as novas tecnologias lhes permitiram se conectar 
com o mundo”
Crédito: Bruno Fontes l Flickr/Creative Commons
CE: Quando se fala sobre o direito à cidade, nem sempre as 
crianças são nomeadas. Será que, ao não nomeá-las, corremos o risco de 
esquecê-las quando pensamos e projetamos o espaço urbano?
Tonucci: Sim. Isso significa 
ocupar-se de todos e não de um alguém. Essa foi a escolha ao dedicar o 
meu trabalho às crianças. Eu não quero uma cidade infantil, uma cidade 
pequena. Não quero uma cidade montessoriana. Quero uma cidade para 
todos. E para estar seguro de que não esquecerei ninguém, escolho o mais
 novo. Essa é a motivação cultural da Cidade das Crianças que, 
traduzidas em decisões administrativas, se trata de mudar três 
prioridades.
A primeira é passar dos adultos para 
as crianças. Os adultos e, sobretudo, os homens, tivemos a capacidade de
 reconstruir o que estava destruído no pós-guerra. Mas o fizemos para 
nós mesmos: adultos e homens. Essa cidade se desenvolveu assumindo as 
necessidades do adulto como sendo as necessidades da cidade. E, claro, o
 adulto levava consigo seu “brinquedo favorito”, que eram os carros. E 
as cidades assumiram características que o carro necessitava. Em relação
 ao desenho das ruas, foram diminuindo as calçadas e aumentando as ruas,
 para que os carros passassem.
A segunda é alterar a prioridade 
entre carros e pedestres. E isso tem um sentido profundo, porque não é 
apenas uma decisão psicológica, é uma decisão democrática, porque todos 
somos pedestres. Só depois de ser pedestre é que alguns escolhem o meio 
privado ou público, mas antes de tudo, somos pedestres. Portanto, 
inverter essa prioridade significa tornar as cidades mais democráticas. 
Isso implica redesenhar as ruas para que sejam, primeiro, à medida dos 
pedestres e, depois, das bicicletas, depois dos meios de transporte 
públicos e só depois dos meios privados. Quando cruzamos uma rua, temos 
que descer uma calçada, entrar na via e subir uma outra calçada. Ou 
seja, abandonamos nosso território de segurança e passamos por um 
caminho que não é nosso e é perigoso. Deveria ser o contrário: a calçada
 deveria entrar na via na mesma altura, de modo que, se eu estou com um 
carrinho de bebê, em cadeira de rodas, ou se levo compras, não preciso 
realizar esse movimento incômodo de descer e subir que fazemos hoje. O 
caminho dos pedestres deveria ser sempre o mesmo e os carros, que 
possuem motor, é que deveriam subir e descer, porque foram feitos para 
isso.
Algumas cidades no mundo estão 
assumindo essa proposta da Cidade das Crianças. Uma delas é Pontevedra, 
no norte da Espanha, na Galícia. O prefeito de Pontevedra disse que 
escutou uma palestra minha e que eu o convenci, justamente com esse 
argumento das prioridades. Então, seus assessores começaram a analisar 
as ruas dessa cidade que possui 80 mil habitantes e viram que a rua 
tinha, ao todo, nove metros de largura, sendo seis metros para os carros
 (ida e volta), mais o estacionamento, sobrando três metros para as 
calçadas que, divididas em dois lados, terminavam com 1,5m cada. 
Considerando o mobiliário urbano, os pedestres tinham cerca de um metro 
apenas para caminhar, o que os obrigava a andar em fila única. Então 
disseram: “Bom, façamos o que diz esse senhor, invertamos as 
prioridades!”. Como chove muito na Galícia, tomaram como base para 
definir o espaço dos pedestres que fosse possível passar duas pessoas 
com o guarda-chuva aberto. Esse foi o plano urbanístico da cidade. 
Somando o mobiliário urbano, chegamos à três metros de cada lado, 
totalizando seis metros para os pedestres. Lamentavelmente, sobraram 
apenas três metros para os carros. Sinalizaram todas as ruas e 
diminuíram drasticamente o espaço para os carros. Viram que, estreitando
 as ruas, a velocidade dos carros diminuía. Há estudos que mostram que, 
se a calçada tem menos de três metros, os carros não sobem mais de 30 
km. Então, definiram que a velocidade da cidade inteira seria 30 km/h. 
O prefeito da cidade, que é médico, 
me dizia que a 50 km/h morre um pedestre a cada dois. E a 30 km/h morre 
um a cada vinte. Essa me parece uma diferença importante. Com essas 
mudanças, eles reduziram em 60% a emissão de CO2. E são alguns anos sem 
mortos em acidentes de trânsito. Na itália, os acidentes de trânsito são
 a primeira causa de morte até os 26 anos. E os custos oriundos desses 
acidentes é de 2,5% do PIB. Isso indica que realizar essas mudanças 
implica economizar muito dinheiro e salvar muitas vidas.
A terceira é inverter a prioridade 
entre bairro e cidade. Claro que falar de Pontevedra a uma pessoa que 
vive em São Paulo pode ser ridículo, mas não é, porque São Paulo pode 
ser a soma de muitas Pontevedras, depende de como você olha para a 
cidade. Você pode projetar e olhar de cima, desenhando muitas linhas, 
traçando caminhos até onde você está, ou o contrário, definindo as 
regras que devem valer dentro de um bairro, já que todos vivemos em um 
bairro. Por isso, é importante garantir um elevado grau satisfatório – 
da felicidade que falávamos antes – dentro dos bairros. Temos que pensar
 que nos bairros deveria ser possível viver bem, mover-se com 
tranquilidade, que todos pudessem viver de forma autônoma, os idosos 
para comprar seu jornal, as crianças para ir à escola. Uma vez definidas
 as regras dos bairros, haveria que aplicá-las à cidade. Isso significa,
 por exemplo, que uma estrada não passaria dentro do bairro, como 
acontece em várias cidades italianas. Ela deveria contorná-lo. “Mas 
então não será reta?”, perguntarão. “Não”. “Mas se não for reta, será 
menos veloz?”. “Sim, será menos veloz”.
“Fonte das Crianças” é um marco da cidade galega de Pontevedra.
Crédito: littlevigo.com/reprodução
CE: Como fazer com essas prioridades sejam invertidas e assumidas 
por quem detém o poder da decisão nas cidades, considerando a 
diversidade de interesses que a compõe? 
Tonucci: Nossa proposta é uma 
proposta política e a colocamos nas mãos dos prefeitos. São poucos os 
prefeitos capazes de escutar as crianças de verdade. Há muitos que 
querem escutá-los aparentemente, como forma de publicidade, para sair em
 fotos na imprensa. Nós renunciamos a todos esses dispositivos. As 
crianças que participam do Conselho das Crianças são escolhidas a partir
 de sorteio. Ou seja, não são os pequenos políticos profissionais da 
escola. Te digo isso porque acredito que a resposta para o que você 
pergunta só pode ser a participação. O interessante de incluir as 
crianças é que eles não têm interesses como nós, ou seja, interesse de 
dinheiro, de poder. Tudo isso está bastante fora do mundo infantil. 
Trabalhamos com crianças bem pequenas, que expressam de forma muito 
simples suas necessidades mais fundamentais. Nesse diálogo, acredito que
 um bom administrador pode encontrar força para colocar-se ao lado de 
todos os cidadãos, sem perder ninguém. É uma escolha de valor, porque as
 crianças levam consigo um conflito. E a cada proposta que fazem, abrem 
um conflito com os adultos. 
Hoje vivemos um conflito novo entre 
as crianças e seus pais, porque as crianças pedem à escola e à cidade, 
mais autonomia e mais liberdade. E seus pais pedem à escola e à cidade, 
mais controle, mais vigilância e mais proteção. São duas visões 
conflitivas e devemos escolher de que lado estamos. Temos que saber que,
 se estamos com os pais, estamos contra os filhos, porque se aumenta o 
controle, diminui a autonomia. Mas se estamos com os filhos, não estamos
 contra os pais, porque quanto mais as crianças tiverem autonomia, mais 
autonomia terão seus pais. E isso eu aprendi observando e refletindo 
sobre as batalhas de vocês, mulheres. Tudo o que vocês conquistaram 
melhorou o mundo. E eu acredito que isso vale para as crianças também: 
tudo o que fazemos para que seja melhor a vida das crianças, faz com que
 seja melhor a vida para nós e para a cidade, como um todo. 
Não é fácil encontrar prefeitos que 
se coloquem ao lado das crianças, porque isso os coloca em conflito com 
seus eleitores, que são os pais. Por isso falo com muito orgulho dessa 
experiências de Pontevedra, porque o prefeito praticamente retirou os 
carros da cidade, mas segue sendo eleito por sua população. 
CE: Essas medidas parecem impor à gestão pública um trabalho intersetorial. O senhor poderia falar sobre isso?
Tonucci: Colocamos essa
 proposta na mão do prefeito porque sabemos que é transversal, ou seja, 
não deve estar dentro de uma secretaria apenas. Deve envolver a cidade 
como um todo, de forma intersetorial. É uma proposta para 
administradores inquietos, para administradores que veem que o que está 
ocorrendo está mal, que o que fizemos até hoje não resolveu nossos 
principais problemas. Creio que a Victória, uma menina de Rosário 
(Argentina), que participa do Conselho das Crianças, resume bem: “Tudo o
 que está ocorrendo é culpa dos adultos. É preciso limitar o poder dos 
adultos”. 
Esse me parece um diagnóstico claro 
de como vão as coisas. E acredito que isso se relaciona com o que você 
falou sobre os interesses que compõem a cidade, sobre quem tem poder na 
cidade. É preciso reduzir o poder dos que têm poder. E as participações 
são a forma democrática de reduzir esse poder. Essa é uma proposta 
complexa porque significa renunciar à parte desse poder.
Fonte:  http://cidadeseducadoras.org.br/reportagens/francesco-tonucci-a-crianca-como-paradigma-de-uma-cidade-para-todos/
Publicado dia 21/09/2016
Publicado dia 21/09/2016

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