Antes de ler e escrever, há muito para fazer
O que devem fazer as crianças antes e depois de entrarem no 1.º ciclo? Brincar, conviver, descobrir o mundo que as rodeia. É tempo de contactar com outros meninos e meninas, promover a socialização, saber estar, partilhar, ouvir e conversar.
Sara R. Oliveira
Há
muito para fazer e descobrir antes de ler, escrever e somar, considera
Rita Castanheira Alves, psicóloga clínica especializada na área infantil
e juvenil e de aconselhamento parental, autora de um projeto que está
no site www.psicologadosmiudos.com, e que acaba de lançar o livro “A
Psicóloga dos Miúdos”. Antes de entrar no 1.º ciclo, há competências a
desenvolver e a estimular nas crianças. “Nos jardins de infância
seguem-se diretrizes e planos normativos, mas há muito espaço para
abordagens e perspectivas diferentes. Em casa, há pais que estimulam
desde cedo umas competências em detrimento de outras”. Há muito para
descobrir desde a nascença até à matrícula no 1.º ciclo. “Dar os
primeiros passos no desafio de descobrir quem é, no aprender a ser
pessoa, a distinguir-se dos outros, a criar uma individualidade, a
sentir-se gostada e a saber gostar”, especifica.
Rita Castanheira
Alves considera que é tempo de desenvolver competências a que chama
“assuntos de toda a vida e mais além”, ou seja, capacidades e
aprendizagens que serão a base para a vida real, no mundo, com os outros
e consigo mesmo. “Esta fase é essencial para os pais e educadores
‘trabalharem’, de forma natural, no dia a dia, em brincadeiras e nas
rotinas com a criança, a tolerância à frustração, a autoestima, a
autoconfiança, a persistência, a solidariedade, a partilha, os limites e
o saber errar e sem nunca esquecer, a literacia emocional, dando-lhes a
possibilidade de conseguirem identificar em si, nos outros, expressar e
regular as emoções, competência transversal para todas as aprendizagens
que se seguem, seja na educação formal ou na vida além escola”, refere.
Antes de se sentar na cadeira da escola, a criança dá os
primeiros passos na autonomia e independência para que, desde cedo e de
forma natural, se sinta segura, capaz de gerir os desafios que surgirão a
qualquer momento. Na escola também. “Uma criança feliz, tranquila,
competente pessoal, social e emocionalmente terá maior probabilidade de
ter sucesso acadêmico e estar preparada para os desafios mais formais da
educação, porque serão também crianças mais motivadas intrinsecamente”.
Nesta
fase, é importante criar desafios e situações adequados às
características e fases de crescimento da criança para desenvolverem a
sua capacidade de resolução de problemas. “Saber que pode ser difícil,
mas que é possível tentar e no meio disto ajudá-la a saber errar, porque
na escola irá errar para aprender. Como tal, saber acima de tudo errar,
confrontar-se com o erro e com a nova tentativa e saber que isso faz
parte da aprendizagem de todos nós, até dos pais”. “Ajudar a par do
erro, a criança a arriscar, a compreender os riscos e a tomar decisões
com os riscos que tem, seja numa simples escolha de duas hipóteses de
brincadeira”.
Nos primeiros anos de vida, é fundamental
experimentar, desenvolver competências artísticas, a agilidade motora. É
tempo de contactar com outras crianças, jovens, adultos, desenvolver a
socialização, saber estar e partilhar, ouvir e conversar. É tempo de
brincar com meninos e com meninas, com bonecas, carrinhos, animais ou
puzzles. “Nesta fase, a brincadeira com a criança é o maior motor de
desenvolvimento de todas estas capacidades essenciais para o que se
segue.” A brincadeira é um meio para tornar as aprendizagens naturais,
descontraídas, fáceis, e eficazes, e ainda criar vínculos afetivos com a
criança.
A criatividade e a imaginação também têm um papel
importante. “Ajudar a criar, a imaginar, seja por histórias, teatros
caseiros, brincadeiras de tapete ou músicas”. “A criatividade é
fundamental para a preparação da criança para a fase das aprendizagens
escolares. Na fase pré-escolar, a criatividade de todas as formas é um
grande recurso e um ingrediente que se pode usar bastante, a par com a
curiosidade”. Ajuda-se a olhar para o que a rodeia, estimula-se o
questionamento, responde-se quando pergunta, pergunta-se também,
procuram-se respostas.
Aprender e experimentar ser feliz. Saber
escrever o nome, decorar letras, contar até 20 sem enganos poderá vir
noutro tempo, quando o 1.º ciclo chegar. Rita Castanheira Alves
considera que há muito para fazer antes disso. “Ou se calhar, com o foco
e investimento nestas competências pessoais, sociais e emocionais,
gradualmente e antes do 1.º ciclo, a vontade da criança em saber o seu
nome, em aprender a contar e a mostrar sinais de que está preparada para
a aprendizagem escolar aparecerá espontaneamente”. “Vale a pena
tentar”, refere.
Brincar é como respirar
Até aos 6
anos, a criança encontra-se numa fase de acelerado desenvolvimento a
vários níveis: físico, motor, social, cognitivo, emocional e
linguístico. Desenvolvimento e aprendizagem andam de mãos dadas. As
relações e interações que os mais pequenos estabelecem entre si e com os
adultos, as experiências proporcionam novas aprendizagens, tudo isso
contribui para o desenvolvimento.
Para Cristina Parente,
professora auxiliar do Departamento de Estudos Integrados de Literacia,
Didática e Supervisão, do Instituto de Educação da Universidade do
Minho, importa apreender quem é a criança. A criança quer conhecer e
compreender o mundo que a rodeia, tem saberes e experiências e, por
isso, faz perguntas e envolve-se em projetos para encontrar respostas
para as suas curiosidades. A criança coloca desafios aos pais, à creche,
ao jardim de infância, à comunidade. “Esta compreensão desafia os pais e
os decisores a procurarem proporcionar as melhores oportunidades de
aprendizagem e desenvolvimento, desde cedo às crianças, tendo como
referência a necessidade de educar cada um até ao limite das suas
possibilidades, procurando, ao mesmo tempo, conseguir a integração de
todos.”
A criança cresce, aprende, desenvolve-se através de
interações que estabelece com as pessoas que a amam, que cuidam dela,
que lhe dão segurança, que estão atentas às suas características e que a
desafiam. “De facto, o processo de educação da criança ocorre num
continuo entre os contextos de educação não formal e os contextos de
educação formal, entre os quais se destaca e família e os contextos de
educação de infância”, refere Cristina Parente.
“Naturalmente
que a criança constrói muitas aprendizagens e se desenvolve nos
contextos da educação informal através dos processos de socialização nas
relações intra familiares e extra familiares. Mas este tipo de resposta,
por si só, parece não ser suficiente tendo em conta as muitas
solicitações das famílias e os limitados apoios na sociedade atual
urbanizada, globalizada e multicultural. O contexto da educação de
infância emerge como uma alternativa mais consistente e integrada para,
em colaboração com as famílias, responder ao desafio da educação das
crianças pequenas”, sublinha a professora do Instituto da Criança da
Universidade do Minho.
Segundo Maria José Araújo, professora da
Escola Superior de Educação do Porto, nos primeiros anos de vida, e não
só, é importante brincar, criar condições para que as crianças brinquem.
“Brincar é muito importante em todas as fases da vida, mas nesta fase é
fundamental. Para a criança é como respirar”, garante. A socialização
também tem uma palavra a dizer. “É com o grupo de pares, com outras
crianças, que criam e recriam as culturas da infância”. “É fundamental
conversar com os filhos e garantir uma instituição de pré-escolar que
valorize o brincar e o diálogo”, sublinha.
Os pais devem, na sua
opinião, saber respeitar os tempos e os ritmos das crianças e
compreender que brincar garante equilíbrio e bem-estar. Há um erro que
convém evitar: há pais e encarregados de educação que procuram no
pré-escolar conteúdos do primeiro ano do 1.º ciclo. “A escola é muito
importante e é por isso mesmo que antes de entrar para o 1.º ciclo do
Ensino Básico, mas também durante, o mais importante é criar condições
para que as crianças brinquem”.
É preciso, sublinha, valorizar
as brincadeiras das crianças como elementos essenciais de relação com a
natureza e com a cultura do mundo adulto. Ao longo da vida, precisam de
atividades equilibradas. “As crianças aprendem regras de cooperação e
respeito brincando. É essencial que os educadores compreendam isso e
valorizem”. Brincar é, afinal de contas, um direito. “O brincar e as
brincadeiras, enquanto manifestações coletivas, ajudam a criança a
desenvolver relações sociais com o seu grupo de pares e com os adultos,
apelando à memória coletiva”, realça Maria José Araújo.
Muito bom!
Que seja lido por muitos gestores, professores e especialistas que querem fazer da Educação Infantil uma preparação para o Ensino Fundamental.
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