Educação sem traumas e sem culpa
Andréa Castello Branco
Desde que o mundo é mundo, as crianças nascem e crescem educadas pelos pais. Salvo as exceções, sempre foi deles a responsabilidade de transmitir princípios e regras de convivência baseados em suas convicções e experiências pessoais e familiares. Mas na última década, os manuais de como educar os filhos transformaram um ato natural em um enorme desafio, uma função cercada de regras, cuidados e listas do que "pode" e do que "não pode" que mais apavoram do que tranquilizam. A maternidade/paternidade se transformou num exercício de sacrifício, na abstenção dos próprios princípios e crenças, num "pisar em ovos" para alcançar a idealizada harmonia familiar.
A maioria desses títulos utiliza a psicologia, principalmente a Teoria do Trauma, segundo a qual situações adversas de qualquer espécie causariam danos irreparáveis à vida emocional das crianças. Passada a fase aguda da auto-ajuda para os pais, esses manuais começam a ser vistos com desconfiança por um motivo simples: não existe receita para educar uma criança. "O maior problema nesse tipo de literatura é que ela não oferece subsídios para que os pais conheçam melhor seus filhos, que é a base para uma boa educação. Há uma culpabilização excessiva e com isso os pais se tornaram inseguros em relação a como agir, se sentem obrigados a admitir tudo. E não se pode admitir tudo", afirma Cláudia Souza, psicóloga com especialização em psicopedagogia.
Segundo a psicóloga, ao contrário do que se pensa, as pequenas atitudes no cotidiano - como repreender, punir, demonstrar raiva, impaciência ou cansaço - não são capazes de causar traumas como temem os pais. "Para traumatizar uma criança é necessário mais de uma causa. Não é um gesto, um ato, que vai provocar isso. E trauma também não é o fim do mundo, não tem que ter medo disso, existem, inclusive, aqueles considerados sadios", explica Cláudia Souza. Jacques Akerman, professor de psicologia da Faculdade Fumec, também vê um exagero na abordagem dos livros que se propõe a ajudar na criação dos filhos. "A gente não controla o que traumatiza ou não. Prefiro trabalhar com um referencial um pouco mais amplo, com a ideia de uma peneira mais grossa. A violência, a questão da sexualidade, e principalmente, esses dois juntos, certamente são experiências traumáticas. O importante é evitarmos o psicologismo, os manuais que dizem o que posso ou não posso fazer, porque senão os pais ficam sem função", defende.
Experiência. Zenaide Faria, 28, enfermeira, mãe de Lucas, 10, e Ana Clara, 2, diz que recorreu aos guias quando teve o primeiro filho pois, aos 18 anos, não sabia ao certo como deveria criar seu filho. Contudo, não ficou satisfeita com os conselhos que encontrou. "Muita coisa saía fora da minha realidade. Além disso, as crianças são diferentes e os pais também são diferentes, não dá pra seguir modelo nenhum, porque o dia-a-dia te coloca situações que não estão nos livros", diz. Para Zenaide, as crianças são naturalmente manipuladoras e pedem limites o tempo todo, mas a culpa dos pais por não estarem tão presentes na vida dos filhos é que torna a educação mais difícil. "O limite da criança é o limite do pai e da mãe. Os livros podem orientar, mas não dão conta de moldar os pais. Você pode seguir os livros até um certo ponto, mas ninguém consegue fingir o tempo todo. Vai ter uma hora você vai ser é o que realmente é, aí a criança vai ficar confusa", diz.
Quanto aos traumas, a enfermeira diz não se preocupar com eles na criação de Lucas e Ana Clara. tem muita coisa que não está no nosso controle,. é um trauma que não tem como impedir de passar. Tem que deixar a criança passar por certas coisas para não assustarem tanto na vida adulta. Se ver que não é uma coisa perigosa, as vezes é bom deixar a criança ir se dar mal, e voltar e perceber que vc não pode criar um filho se preocupando com trauma. Tem que criar um filho pensando na educação, no que vai ser melhor para ele.
Os pais dão muito, não é por questão de chorar, mas por se culparem por não estarem tão presente. As crianças manipulam muito, testam o tempo todo para saber até onde ela pode ir.
Efeito Colateral. A adoção de receitas para a criação dos filhos pode causar efeitos negativos para todos: os pais ficam mais inseguros e culpados e os filhos desamparados pela indecisão de quem deveria lhe dar segurança. Segundo Cláudia Souza, nada mais prejudicial aos filhos do que pais inseguros e vacilantes quanto aos limites de liberdade. "A culpa afrouxa o limite. Os pais não devem ser autoritários, mas eles são a única autoridade para a criança. Sem isso, ela fica angustiada porque precisa ter certeza que aqueles pais dão conta dela, que o amor é suficiente para superar as agressões, as birras", diz a psicóloga, ressaltando que é natural que a criança teste os pais para saber até onde podem ir.
Para Jacques Akerman, além de fugir das receitas prontas, os pais ainda têm que lidar com a contradição de criar os filhos num mundo extremamente permissivo e, ao mesmo tempo, ter que colocar regras e condições. "O que a cultura pós-moderna prega? Que você aproveite a vida ao máximo, tenha tudo, goze bastante, consuma o máximo. Os pais estão imersos nessa cultura, por isso não devemos colocá-los como culpados de nada. O limite fica prejudicado, fica vacilante, porque eles estão na contramão, na contra-corrente da ordem vigente, de um fato histórico", analisa.
Anti-receita. Como cada criança é única e não vem com uma "instrução de uso", Cláudia Souza diz que o melhor caminho para uma educação saudável é os pais se conhecerem e observarem os filhos, seja nas brincadeiras, na relação com outras crianças ou em conversas em casa. "A partir daí, a resposta que todos procuram - "como devo fazer?" - vai surgir. Para criar um filho é fundamental uma relação baseada na verdade, e os manuais nos afastam daquilo que somos", diz.
Para ela, a ideologia do super-homem, do profissional polivalente, não deve desumanizar a relação com os filhos. "Eles também precisam nos conhecer, saber que temos limites, que erramos, que somos humanos. Pode escapar uma palmada e isso acaba virando um drama, porque o manual diz que não pode bater. Mas a raiva é um sentimento humano e é mais honesto você dizer isso ao seu filho do que ficar se culpando", comenta.
Andréa Castello Branco (Matéria publicada no Jornal O Tempo)
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