A Construção Gráfico-Plástica
Nancy de Fátima Silva Morita¹
Viajar ao
sabor da imaginação, dando asas ao possível e ao impossível, e descobrir o
universo oculto dos múltiplos sentidos escondidos nos desenhos infantis. É
nesse contexto que mergulharemos um pouco para aprender muito da originalidade,
da vivacidade de espírito e do inusitado que reveste a encantadora arte
criativa dos primeiros desenhos infantis.
Quando a
criança pequena vence suas primeiras dificuldades físico-posturais – por
exemplo, sustentação do tronco superior –, acontece concomitantemente uma maior
exploração do meio. Ela observa, manipula e ressignifica tudo à sua volta. É
nesse momento que habitualmente acontece a manipulação primeira de objetos,
como o giz de cera, os pincéis, as tintas, etc.
Assim,
bem antes que uma criança pequena possa organizar e elaborar seus desenhos, ou
melhor, seus primeiros traços, é necessário encorajá-la a descobrir os objetos,
suas cores e suas formas. Ela aceitará melhor as condutas e as técnicas
precisas e mais organizadas e/ou estruturadas (modo de utilizar, controle do
gesto...) se já tiver conhecimentos prévios dos materiais, bem como
oportunidade de livre exploração dos utensílios, dos materiais e da disposição
destes no local. As descobertas feitas pelas crianças pequenas são mais
significativas e mais importantes do que o resultado estético obtido.
É
importante que se proporcione o maior número de experiências com materiais
alusivos à construção de desenhos, pinturas, formas em argila, de modo que a
criança possa tocar e reconhecer os materiais, misturar e apreciar livremente
os resultados e ter prazer e ludicidade nesse jogo criativo. A atenção do
adulto nesse período de intensa descoberta da criança é muito importante. É ele
quem acompanha os primeiros passos da criança, seus primeiros gestos, suas
primeiras sensações. Nesse momento, a criança busca compreender noções de
lugar, espaço, tamanhos, texturas e adquire conceitos como quente e frio, nome
das cores e dos materiais, etc. Com o auxílio do adulto, acontecerá, simultaneamente,
um grande enriquecimento do vocabulário e do repertório na argumentação.
Buscando
fundamentação em Piaget, sabemos que, para conhecer os objetos que a cercam, a
criança deve agir sobre eles, transformando-os até chegar a compreendê-los.
Essa apropriação das coisas do mundo resulta, portanto, da própria atividade da
criança. Ela se apossa do que abstrai de suas experiências e aumenta seu conhecimento.
Os objetos também influenciam as ações da criança, modificando-as, ao mesmo
tempo em que têm suas funções originais modificadas por elas.
Assim, é
importante atentar para o fato de que a criança desde muito pequena deve ter a
oportunidade de vivenciar algumas experiências antes de ter nas mãos um giz de
cera e um papel, ou um pincel e tintas para efetuar seus primeiros desenhos. É
imprescindível que contatos anteriores com os materiais e procedimentos de
encorajamento associados à maturidade motora aconteçam em contextos de significados
repletos de amorosidade e prazer. Os gestos e a coordenação motora
organizar-se-ão melhor à medida que o adulto lhe proporcionar tal conjuntura, e
principalmente lhe proporcionar ampla visão de mundo.
O desenho
infantil é o resultado da interpretação espontânea dos momentos de
aprendizagem, da conquista da organização estruturada do gesto e do manuseio
adequado dos materiais e das cores. As experiências ofertadas pelos adultos e
pelo ambiente que a cerca, bem como os utensílios à sua disposição, serão
fatores determinantes nessa iniciação da criança com a expressão gráfico-plástica.
Paulatinamente,
a criança começa a organizar o traço e suas idéias, e as tentativas de
apresentar formas estruturadas e localizadas no tempo e no espaço aparecem,
ainda que de forma rudimentar para o adulto.
Pedir a
essa criança que investigue e descubra os limites existentes em diferentes
superfícies e, num segundo momento, proporcionar diferentes possibilidades de
organizar nesse espaço seus traços e/ou seus primeiros desenhos certamente
serão de grande ajuda para que ela obtenha referências e construa intuitivamente
o conceito de proporcionalidade.
Outro
fator importante é oferecer a possibilidade de a criança desenvolver seus
desenhos em diferentes planos de trabalho; oferecer superfícies na horizontal e
na vertical e papel em tamanho grande o suficiente (quanto menor a criança
maior deverá ser o papel) contribui muito para que a criança construa noções espaciais,
bem como a localização e a utilização do espaço proposto. É importante, ainda,
ofertar superfícies diferentes do papel, como a madeira ou paredes, por
exemplo.
As
brincadeiras, dirigidas ou não, envolvendo manipulação dos materiais
pertinentes à construção de desenhos colocam a criança na linguagem natural de
seu universo, podendo ser pinturas com esponjas, com as mãos, com os pés, etc.
Essas atividades permitem que a criança interaja com o universo das artes e se
aproprie dele de forma lúdica e significativa.
A
progressão gradativa do controle físico-postural e a crescente conquista
motora, associadas à curiosidade aguçada e à vontade de explorar e dominar o
mundo ao seu redor, fazem com que a atividade ante o desenvolvimento e a
construção de desenhos aumente em quantidade e qualidade.
Aos
poucos, essa criança já se organiza melhor no tempo e no espaço, já utiliza com
maior propriedade os materiais e suas possibilidades. As formas são mais definidas
e buscam cada vez mais correspondência com o contexto vivenciado. É
interessante observar que a criança vai regulando paulatinamente o diálogo com
o desenho. À medida que dialoga com parceiros e/ou absorve interferências
ambientais, vai modificando e ressignificando seu desenho.
Gradativamente,
ela vai construindo seus referenciais de proporcionalidade, cores, espaço,
tempo, etc. As crianças estão nessa fase desenvolvendo funções mentais bastante
elaboradas, estão ampliando sua visão de mundo, bem como a percepção do
cotidiano, e questões relevantes como “quem fez o papel?”, “e as tintas, como
foram feitas?” fazem parte de seu repertório.
A maneira
de interagir com o material e a preferência por este ou aquele aparecem também
de forma mais definida, até mesmo a mistura das cores mostra particularidades e
sensibilidades diferentes, tanto no fazer quanto no resultado final e na
apreciação.
Nessa
fase, os desenhos carregam uma relação estreita com as emoções mais sinceras,
as crianças desenham seus desejos, seus sonhos, seus amores e seus desamores.
Fazem do espaço lúdico-plástico um construir e reconstruir da imaginação e da
memória afetiva.
É muito
importante respeitar o tempo e o repertório particular de cada criança, não lhe
ofertando modelos preconcebidos pelo adulto, ao contrário, permitindo que ela
mesma crie e recrie suas próprias técnicas de representação.
À medida
que vai crescendo, o que se percebe é que os gestos anteriormente desordenados
e exagerados vão pouco a pouco dando forma a expressões mais definidas,
organizadas e controladas. A criança passa gradativamente a gerir seus atos,
comanda o traço e o desenho, aperfeiçoa cada vez mais seus gestos, sua evolução
gráfica e psicomotora perante a construção artística.
As formas
construídas e determinadas individualmente pelas crianças ajudam a estruturar
uma identidade bastante peculiar de como cada uma constrói seu grafismo. Para
que isso seja possível, os adultos não devem oferecer modelos e desenhos
estereotipados, pois a criança tende a substituir sua linguagem expressiva
natural pelo desenho do adulto (muitas vezes descontextualizado).
A atenção
do adulto “cuidador”, nesses momentos, é relevante, pois a criança, ao mesmo
tempo em que
precisa
de referenciais e orientações, precisa ainda mais de liberdade de ação e reflexão.
Habitualmente, pais e professores de crianças pequenas tendem a fazer muitas
indagações sobre os desenhos que estas fazem:
“O que é
isso? O que você desenhou?”. No entanto, muitas vezes a criança manuseia
materiais artísticos e
produz
formas por puro prazer, não havendo intencionalidade de representação, mas, diante
da indagação do adulto, ela responde que está construindo algo cognoscível,
alterando dessa forma sua exploração imagética, livre e prazerosa em função das
expectativas ansiosas e escolarizantes do mundo adulto.
O caminho
da construção gráfico-plástica pela criança pequena passa necessariamente pela
exploração
livre dos
materiais, pela construção das hipóteses sobre estes e pela capacidade
imaginativa e investigativa de cada uma. Por isso, um ambiente que proporcione
desafios a essas mentes criativas é de imenso valor e pode auxiliar a criança
nesse percurso, no qual ela se utiliza dos recursos simbólicos do meio
artístico para construir representações significativas específicas que só a
arte é capaz de proporcionar.
A
possibilidade de transformar ludicamente a realidade material proporciona às
crianças um canal competente e exclusivo para abordar e elaborar significados
importantes e complexos, uma vez que nessa faixa etária a expressão gráfico-plástica
explica melhor o contexto de cada criança do que a própria linguagem verbal.
Heloisa Pedroza Lima 💙💚💛💜
Fonte: Revista Criança
Bibliografia
• CUNHA,
Susana Rangel Vieira da (Org.). Cor, som e movimento. Ed. Mediação, 1999.
• PIAGET,
J. A formação do símbolo na criança. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
• STEINKAMPF, Sylvie;
UGLIANICA, Sylvie. Premiers dessins. Ed. Dessain et Tolra.
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